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Presença Luterana no Brasil - 200 anos de história

Atualizado: 20 de mai.

Passado, presente e futuro: muito além da religião, o impacto social da igreja luterana no Brasil


Igreja Luterana de Domingos Martins hoje em dia | Foto: Portal Luterano
Igreja Luterana de Domingos Martins hoje em dia | Foto: Portal Luterano

Em 2024, a comunidade luterana brasileira comemorou 200 anos de história. Luterano é quem professa sua fé em Jesus Cristo a partir dos ensinamentos bíblicos redescobertos por Martim Lutero, no que conhecemos como “Reforma Luterana” ou “Reforma Protestante”.

O movimento, ao contrário do que muitos consideram um fato, não tinha o ímpeto de criar uma nova igreja. Martim Lutero era um monge católico agostiniano que, ao perceber que o clero da época se desviava da Bíblia, promoveu uma reforma. Como indica a etimologia da palavra, “reformar” é “trazer de novo à forma”. Por isso, em 31 de outubro de 1517, Lutero pregou as 95 teses na porta do templo de Wittenberg, na Alemanha, propondo uma reflexão e mudanças de prática pelo clero. No entanto, a Igreja rejeitou os escritos, desencadeando o movimento da Reforma.

Hoje, as igrejas cristãs no mundo podem ser divididas da seguinte forma: históricas (luterana, católica, batista, metodista, presbiteriana), pentecostais (Assembleia de Deus e demais) e neopentecostais (Igreja Universal, Deus é Amor e outras).

No Brasil, existem duas denominações luteranas reconhecidas: a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) e a Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB). A base de fé de ambas é a mesma, mas elas se diferenciam em origem e em alguns pontos doutrinários. A IECLB está presente no país desde 1824 e representa a presença da igreja protestante luterana da Alemanha no Brasil. Já a IELB está presente desde 1904, trazida por missionários luteranos do Sínodo Missouri, dos Estados Unidos da América (EUA), sendo uma ramificação exclusivista da atual Evangelical Lutheran Church in America (ELCA).

Esta reportagem se baseará na história dos primeiros luteranos vindos ao Brasil, que mais tarde viriam a ser reconhecidos como parte da IECLB e, posteriormente, também integraram a IELB.


Passado 


Em seu início, o luteranismo chegou ao Brasil, em 1824, em forma de diáspora - uma dispersão de um povo motivada por preconceitos. A maioria dos luteranos que desembarcou no país, no século XIX, era composta por pessoas pobres. Naquela época, o governo inglês havia recém-promulgado sanções determinando o fim da escravidão nas colônias. Assim, em busca de uma nova fonte de mão de obra barata, surgiram as navegações que trouxeram imigrantes alemães e italianos à América do Sul, já que a Coroa portuguesa proibia a entrada de espanhóis, franceses e holandeses no Brasil. Mas quem deixaria tudo para trabalhar em outro continente, do outro lado do oceano? Apenas os pobres — pessoas que já não tinham grandes esperanças em continuar no seu país de origem. E foram elas que trouxeram o luteranismo consigo.

As primeiras comunidades de alemães protestantes no Brasil das quais se tem registro hoje são as de Nova Friburgo, no estado do Rio de Janeiro, e a de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul - que viriam a ser fortalecidas mais tarde com os imigrantes que chegariam ao país durante as duas guerras mundiais.

O coordenador do Laboratório de Estudos de Imigração e História Ambiental, Prof. Dr. João Klug, afirma que “em grande medida, tratava-se de gente bastante pobre, que fugia da miséria e da falta de perspectivas. Nos estados alemães nos quais viviam, era comum a presença de ‘agentes de imigração’, isto é, indivíduos contratados por empresas colonizadoras e/ou empresas de navegação, as quais auferiam lucros com o transporte de imigrantes. Deve-se destacar que muitos foram vítimas de propagandas enganosas, que prometiam uma realidade que nunca se concretizou. Diríamos, hoje, que foram vítimas de fake news. Não tinham clareza do que os esperava e tampouco conhecimento da realidade que encontrariam. Ser agricultor na Baviera, Turíngia, Saxônia, etc., era uma coisa. Ser agricultor no bioma da Mata Atlântica aqui no Brasil era algo bem diferente”.

Os primeiros luteranos no Brasil, além da dificuldade ambiental para se estabelecerem, também enfrentaram discriminação religiosa. Um dos aspectos mais marcantes da cultura de um povo é a sua fé.

“A religião oficial no Brasil ao longo do período imperial era o catolicismo. Outras religiões, como o luteranismo, eram apenas toleradas. É notório que a religião era um elemento constitutivo da identidade dos imigrantes, o que representou um grande problema ao chegarem ao Brasil, visto que eram discriminados: o casamento não era reconhecido - o que os caracterizava como concubinos -, questões sucessórias e de herança também não eram validadas, e os sepultamentos não podiam ocorrer em cemitérios católicos, que não recebiam o corpo de um herege luterano”, destacou o professor João Klug.

Esse cenário de intolerância religiosa acompanhou os luteranos por muito tempo. Como mencionado, uma das primeiras colônias teuto-luteranas do Brasil se localizava no estado do Rio de Janeiro. Contudo, há, logo acima, no Espírito Santo, uma igreja que carrega uma história marcante desse povo: em Domingos Martins está situada a primeira igreja evangélica (e, por assim dizer, luterana) do país a possuir uma torre e um sino.

O professor João Klug explica que “os espaços para o culto luterano não podiam ter aspecto arquitetônico de igreja (como uma torre, por exemplo) e, assim, a fé luterana era celebrada, em grande medida, nas casas das pessoas”. No entanto, como conta a história, um dos membros da comunidade de Domingos Martins, Nikolaus Velten, em 1887, teve a ousada ideia de construir um templo com torre e sino, desafiando diretamente as leis da época.

Segundo José Eugênio Vieira, autor do livro Italemães, “alguns concordaram com a ideia, outros não. A comunidade era pobre, mas conseguiu reunir cerca de 800 mil réis, o que naquela época era muito dinheiro”. Com grande esforço, três sinos foram trazidos da Alemanha para serem instalados na nova torre - onde permanecem até hoje. Curiosamente, mesmo diante de tantas proibições, luteranos e católicos se uniram, à época, para abrir caminho e permitir que os sinos chegassem à cidade.

Uma das principais características do luteranismo sempre foi a ênfase na educação. Lutero, figura central da Reforma, defendia que a educação deveria ser obrigatória e acessível a todos. Com o crescimento das comunidades luteranas no Brasil e o nascimento de crianças, surgiram as primeiras escolas teuto-brasileiras.

“[...] A rigor, os luteranos não influenciaram a cultura brasileira em larga escala. No entanto, ao nível micro, comunitário, sim - especialmente, por meio das escolas. Elas eram comunitárias e admitiam também crianças oriundas de famílias não luteranas. Portanto, não trabalhavam com exclusividade, mas com inclusão, o que gerou impactos positivos e significativos em várias comunidades. Essa escolarização simples, mas eficiente, foi uma marca das comunidades luteranas”.

Essa marca permaneceu por décadas, até o advento do Estado Novo, de Getúlio Vargas, em 1937, quando o ensino em língua alemã foi proibido, e dezenas de escolas foram sumariamente fechadas - sem que nada fosse colocado em seu lugar. “As escolas das colônias, especialmente aquelas de predominância luterana, foram, durante muitos anos, a mais genuína instituição comunitária, ensinando também o significado de cidadania [...]”, enfatizou o professor João Klug.


Presente


Atualmente, as comunidades luteranas, dentro do ramo da IECLB, se dividem em âmbito nacional, sinodal (uma espécie de divisão por regiões), paroquial e comunitário. A igreja, assim como no passado, não se baseia apenas no religioso, mas também se enquadra no viver comunitário: com heranças de imigrantes europeus, as comunidades luteranas têm o costume de celebrar festividades e tradições dessas regiões. É muito comum ver comunidades luteranas promovendo feiras de cuca (um bolo/pão tradicional alemão), kerbfest, oktoberfest e cafés coloniais, todos eventos com grande influência da genética que carregam. 

Porém, podemos observar que grande parte dessas tradições são seguidas apenas por membros mais velhos desse povo. De acordo com o Pastor Sinodal do Sínodo Rio Paraná, Afonso Weimer, ministro ordenado da IECLB, “a Igreja como organização e instituição tem estado em crescimento vegetativo nos últimos anos: crescemos apenas conforme o crescimento natural das famílias membros. [...] Não é nossa perspectiva crescer apenas em número de pessoas membros, mas que também exista crescimento em compreensão, fé, vida comunitária e incidência pública”. 

A realidade de ajuntamentos de um povo teuto-luterano, que se unia para promover sua fé em meio a uma sociedade que os subjugava, está se esvaindo. No momento atual, muito se percebe, afetada principalmente pela pandemia que teve início em 2020, que a ideia da necessidade de uma comunidade para que o ser humano sobreviva já está se perdendo. As pessoas acreditam que por si sós conseguem manter-se, e isso afetou todos os âmbitos, até o da fé. Porém, a igreja não irá jamais desistir: os luteranos acreditam, desde a criação de seus primeiros dogmas, que a vida em comunidade é de suma significância. Uma das exemplificações disso é a importância que davam ao ato de ir à escola pelas crianças, o de viver em turma para o aprendizado.

O perfil do povo luterano mudou da época da colonização para agora. “O principal, sem dúvida, é a transposição de um perfil mais rural e interior (comunidades em espaços rurais) para uma urbanização rápida e constante. É, em parte, o caminho da sociedade brasileira. Tal mudança muda as relações sociais e, obviamente, também as relações comunitárias e de fé.  A individualização da fé, a perda de referências familiares religiosas são mudanças fortes no perfil.  A fé deixa de ser uma vivência comunitária e torna-se intimista. Nem todas as pessoas da família comungam a mesma fé e cada qual vive sua espiritualidade”, ressaltou o Pastor Afonso. 

Porém, a diversidade de religiões não é um obstáculo ao luteranismo: um povo que sofreu tanto e foi tão marginalizado em seus primórdios, seria contraditório ter uma posição de “construir muros” a outras religiões. Preferem, portanto, “construir pontes”. “O Luteranismo no Brasil tem por Constituição ser ecumênico. Desde sua constituição ao nível nacional em 1968 (onde adotou a nomenclatura de Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil), somos participantes de organismos ecumênicos ao nível nacional e internacional. O diálogo respeitoso e a ação diaconal são princípios que nos norteiam. Conversar sobre nossas convergências e aquilo que nos une no anúncio do Evangelho e ter uma ação em comum diante da realidade social em nosso país. Esta é nossa postura ecumênica”, postulou ainda o pastor.

Comemorar os 200 anos de presença luterana no Brasil têm duas perspectivas: solenizar e relembrar tudo que as comunidades teuto-luteranas viveram nesse último bicentenário e mostrar que essas organizações ainda existem.

“Por vezes, muitos anos uma comunidade está em determinado lugar e a sociedade circundante desconhece sua atuação ou relevância. Por isso, celebrar os 200 anos, não é um ato ufanista e nem deve ser assim visto, mas, sim, resgatar a persistência e vivência de fé antes de nós”, afirmou o pastor.

Futuro


Para os anos que virão, mesmo diante da perspectiva atual de que “a Igreja [...] tem estado em crescimento vegetativo nos últimos anos”, conforme apontado pelo pastor Afonso, a expectativa e o trabalho da Igreja e da comunidade luterana seguem em outra direção. Ambas as igrejas presentes no território brasileiro, IECLB e IELB, têm fortalecido suas ações junto às pessoas jovens, partilhando da mesma convicção:

uma comunidade que reafirma a presença e a participação da juventude é uma comunidade com futuro e que seguirá em frente.

A vice-presidente da Federação Luterana Mundial na América Latina e Caribe, Isabela Gnas, destaca que “acredito que a Igreja precisa reafirmar sua vocação relacional. O mundo vive uma crise de pertencimento, e a comunidade de fé pode ser esse espaço seguro de escuta, acolhimento e cuidado”.

No entanto, ela reconhece que nem tudo está pronto para que esse futuro promissor se concretize: “para isso, é necessário sair das estruturas rígidas, buscar novas formas de estar presente na vida das pessoas, cultivar vínculos reais e valorizar a presença mais do que a performance”. 

Isabela chegou onde está - em um cargo de grande representação e importância para as igrejas luteranas ao redor do mundo - graças ao trabalho com juventudes promovido pela Igreja. Ela é, atualmente, a vice-presidente mais jovem da Federação Luterana Mundial. “Ao longo da minha caminhada, encontrei pessoas que confiaram em mim, que abriram espaço e acreditaram no potencial da juventude. Ser eleita vice-presidente da FLM representa não apenas uma conquista pessoal, mas a certeza de que é possível ocupar espaços, inspirar outras lideranças jovens e contribuir ativamente com os rumos da Igreja”.

A perspectiva para o futuro da Igreja caminha lado a lado com o olhar voltado às crianças e, especialmente, às pessoas jovens que seguem construindo comunidade.

“A juventude não é apenas o futuro da Igreja - é o presente. Jovens têm dons, ideias e energia que, quando acolhidos e incentivados, transformam a vida comunitária. Quando são escutados e envolvidos, a Igreja se renova e se fortalece”, salientou Isabela.

Em meio às comemorações dos 200 anos de presença luterana, é essencial, como já destacamos, recordar quem construiu e sustentou as comunidades teuto-evangélicas ao longo da história. No entanto, também é urgente cultivar a perspectiva de futuro. A Igreja precisa ser atual, sem perder sua essência, sua base. “A centralidade da graça, o sacerdócio geral de todas as pessoas crentes, o senso de comunidade e o compromisso com a justiça e a liberdade responsável. Esses pilares sustentam a fé luterana e precisam ser preservados. Somos uma Igreja que se reforma continuamente, que busca viver a fé com coragem, responsabilidade e abertura para o novo, sem perder de vista sua identidade”, afirmou Isabela Gnas ao ser questionada sobre o que devemos levar adiante.

“A juventude tem muito a oferecer. Quando há espaço, incentivo e escuta verdadeira, a fé se torna viva e transformadora. Que possamos construir uma Igreja onde os jovens sejam parte ativa, onde possam sonhar, questionar, criar e servir. Existe futuro para a Igreja - e ele passa pelo diálogo, pela inclusão e pelo testemunho do amor de Deus no mundo”, concluiu a jovem.

A Igreja Luterana no Brasil tem passado, é presente - e será o futuro.


Juventude Evangélica Luterana da IECLB em comemoração aos 200 anos | Foto: Portal Luterano
Juventude Evangélica Luterana da IECLB em comemoração aos 200 anos | Foto: Portal Luterano

8 Comments


Muito legal, Maria


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Izabella, que trabalho impressionante. Seu texto é uma aula de história, de fé e de sensibilidade social. A forma como você articula passado, presente e futuro da Igreja Luterana no Brasil demonstra maturidade jornalística, responsabilidade na apuração e uma escrita clara, rica e envolvente. Gostei, especialmente, da maneira como você destacou o papel da juventude na renovação da fé comunitária - sem perder de vista os pilares históricos e teológicos que sustentam essa tradição. Parabéns pela pesquisa cuidadosa e por construir uma narrativa tão completa e relevante. Siga firme nesse caminho: você tem muito a contribuir com o jornalismo que informa, conecta e inspira.

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Uma reportagem muito interessante, foi muito legal saber um pouco mais da historia da presença Luterana no Brasil!

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Incrível! Parabéns

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Parabéns pelo texto, Maria!


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Produzido pelos acadêmicos do 5º período do curso de Jornalismo do Centro Universitário FAG, na disciplina de Webjornalismo, sob orientação do professor Alcemar Araújo.

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