The Ugly Stepsister: a obsessão pela beleza e a autodestruição física
- Luís Figueiredo
- 6 de jun.
- 6 min de leitura
Atualizado: 6 de jun.
Através de brutalidade e cenas gráficas, narrativa do filme escancara os limites entre vaidade, violência e desumanização

“Quando eu devia ter vivido presa para sentir-me agora mais livre somente por não recear mais a falta de estética”
Clarice Lispector
“The Ugly Stepsister” (traduzido para o português “A Meia-irmã Feia) é o mais novo filme do gênero chamado terror corporal dirigido pela estreante Emilie Blichfeldt produzido em uma parceria da Mer Film, Lava Films, Zentropa Entertainments e MOTOR. O filme estreou na Noruega no dia 7 de março de 2025 e foi protagonizado por Lea Myren, Thea Sofie Loch Næss e Ane Dahl Torp.
Com uma recepção positiva, o filme cativou tanto os críticos quanto o público geral e recebeu o Bacchus Award por direção em sua estreia no Boston Underground Film Festival. Com uma nota de 4.3/5, a avaliação do público o cita como “provocante”, “interessante” e “nojento”.

Como uma sátira à história original da Cinderela, a narrativa nos apresenta Rebekka (Ane Dahl Torp) e suas filhas Elvira (Lea Myren) e Alma (Flo Fagerli). A matriarca, recém-casada, está prestes a se encontrar com seu esposo, o senhor Otto (Ralph Carlsson) e sua filha Agnes (Thea Sofie Loch Næss), que as recebem em sua casa pela primeira vez após o casamento. É notável a reversão de papéis da história original, pois no roteiro de Blichfeldt, Agnes é retratada com certo ar de superioridade em relação às suas meias-irmãs, e Elvira por sua vez, é retratada como uma menina inocente e alegre que sonha em se casar com o príncipe do reino, não pelo seu dinheiro e fama, mas sim, pelo amor que ela sente por ele desde que leu seu livro de poemas.
“Tomei a liberdade de combinar diferentes versões de Cinderela [...] A questão para mim era: qual é a minha perspectiva sobre isso? Era muito importante para mim fazer da meia-irmã uma personagem tridimensional, não apenas um arquétipo.” conta a diretora em entrevista ao The Hollywood Reporter.
No início, tudo é uma maravilha, todos se dão muito bem, dividem refeições juntos e formam uma família feliz. Até que, subitamente, Otto vem a falecer, deixando Agnes à deriva de sua madrasta e suas meias-irmãs malvadas. Pelo menos é o que a história original nos conta. O filme retrata o luto de Agnes de uma forma brutal, pois ela não come e não sai de seu quarto, apenas chora. Elvira em um ato de compaixão, leva um prato com bolo e palavras de conforto para a jovem que, com desdém, diz que elas só estão ali pelo dinheiro que teriam a oferecer para ela e seu pai. Porém, a ideia inicial de Rebekka era se casar com Otto pelo dinheiro dele, o que leva todos a um paradoxo. O casamento serviu de que? Desolada pela informação, a mãe se desespera ao pensar que agora terá de cuidar de 3 meninas e enterrar seu marido sem dinheiro algum.
A esperança de um recomeço é simplesmente nula… até que uma luz surge no fim do túnel. O príncipe deseja se casar, e promoverá um baile que contará com a presença de todas as jovens virgens do reino, onde terão uma oportunidade de se destacar em uma apresentação de dança e serem escolhidas para uma valsa. Eventualmente, a que for escolhida, se casará com o príncipe. O mensageiro anuncia a festa no portão da casa delas e entrega o convite para Agnes e para Elvira. Vale destacar que Alma, a outra irmã, é retratada no filme como criança, levando em conta que ela não “sangrou” ainda.

A partir disso, se inicia um verdadeiro mata-mata dentro da casa. A mãe de Elvira pressionava a garota, realizando coisas inimagináveis para atingir a perfeição esperada de uma princesa, a fim de que ela se case com o príncipe e traga riqueza e ostentação à família. Elvira, por sua vez, se negava a mudar, esperando que o príncipe a ame pelo que ela é de verdade, como sonhou sua vida toda. Em cenas horripilantes, são mostrados procedimentos estéticos performados com materiais disponíveis no tempo onde o filme se passa. Em um dos métodos, o cirurgião visando alongar os cílios da garota, insere uma linha de costura, através de uma agulha, na pálpebra de Elvira. Existem diversas outras cenas onde os procedimentos contam com uma crueldade visceral e um certo tipo de surrealismo intencional.
A busca incessante pela perfeição deixou de ser algo relacionado à esperança de uma criança julgada por seus pais por ser “gorda” demais, crescer e se tornar o padrão estético desejado. Não, a obsessão de pessoas adultas com a beleza infinita tomou proporções inimagináveis. Assistindo o filme, que nos é apresentado em forma de fábula, até nos dá um alívio de pensar “isso só acontece em filme” com cenas surreais de pessoas vomitando tênias quilométricas, cortando os dedos dos pés para caber em um sapato ou tomando substâncias experimentais que produzem um novo corpo mais jovem e mais bonito na esperança de reconstruir um império de fama. Mas não, isso não acontece só nos filmes.
No decorrer da trama, os procedimentos vão ficando cada vez mais sérios, porém, a posição social da protagonista sobe cada vez mais. Quanto mais bonita ela fica, mais chances ela tem de ocupar a posição principal da coreografia.
É revelado em uma cena do filme, que Elvira só passou no teste pois sua mãe pagou para a professora a admitir, e isso a deixa frustrada, porém, com mais sangue nos olhos do que nunca.
Toda a inocência retratada na personagem do início do filme, se transforma em obsessão, tanto dela quanto de sua mãe. A cada “conquista”, o desejo de alcançar a perfeição aumenta. Porém a que custo? Até que ponto toda essa mudança é benéfica para ela?
Procedimentos como lipoaspiração, implantes mamários são extremamente invasivos, podendo apresentar riscos como infecções e complicações com a anestesia. Preenchimentos faciais com ácido hialurônico ou polimetilmetacrilato, esse último sendo um material não absorvível pelo corpo, o que pode gerar riscos caso haja problemas futuros, pois a dificuldade para retirar é maior. Diversos casos já ocorreram, como por exemplo o da influenciadora digital Aline Maria Ferreira, de 33 anos, que faleceu em decorrência de uma aplicação de polimetilmetacrilato nos glúteos.
“Um dos poucos filmes recentes que realmente me cativou e não tirei o olho da tela nem por um minuto. A busca obsessiva feminina pela perfeição sendo demonstrada, e mais uma vez levando a personagem à mediocridade. Já vi isso antes em filmes como: Pearl, Black Swan, I, Tonya, Perfect Blue, em todos esses, as protagonistas ficam a beira de um surto, fazem o que for necessário para serem vistas como perfeitas e no final, tudo é em vão”, conta o usuário Pedro em sua análise do filme no aplicativo Letterbox.

A relação do filme com os padrões estéticos atuais
Datadas a cerca de 4000 a.C, os primeiros procedimentos estéticos visavam não a vaidade, mas sim, a saúde de quem os fazia. Na Índia Antiga, narizes mutilados como punição eram reconstruídos com pele retirada da testa do indivíduo. A estética como área de estudo só surgiu no século XVIII, com os estudos de Alexander Baumgarten em seu livro “Estética” de 1750. Mas, foi somente após a Primeira Guerra Mundial que as cirurgias plásticas se popularizaram como maneira de reconstruir rosto e membros de soldados feridos em combate. Considerado como o pai das cirurgias plásticas modernas, o pioneiro Sir Harold Gillies, um médico Neozelandês, notou que as feridas de seus pacientes poderia ser fechadas com tecidos de outras partes do corpo, a fim de restabelecer funções corporais e dar uma aparência estética melhor e mais próxima do comum, e mais tarde, viria a descobrir que mesmo sem uma lesão grave, ele poderia manipular o rosto das pessoas para melhorar-lhes a aparência.
Os procedimentos estéticos tomaram uma proporção insana com a popularização nas redes sociais. Influenciadores, cantores e artistas da mídia falam abertamente sobre suas cirurgias plásticas e incentivam seus seguidores a fazerem o mesmo na ideia de que isso trará uma vida melhor e uma (falsa) felicidade.
A grande sacada do uso de mídias digitais para promover uma vida inexistente, é justamente a condição de inalcançável que elas nos apresentam. Tudo o que está na tela é de mentira, são personagens atuando num filme de fantasia onde existe o corpo perfeito, a roupa perfeita, a família perfeita.
A intenção é sempre vender uma história sublime para que os espectadores usem de base essa fábula, e sempre desejarem por mais. Nunca se contentam com o que eles têm, mas sempre aspiram por ter aquilo que o filme das redes sociais mostra. Mas um filme sempre tem um final. E nem sempre ele é feliz.
Parabéns pelo texto!
Aiii, Luis, QUE MEDOOO!! 😆😅 Mas li tuuuudo. Não consegui parar a leitura, mesmo sabendo que ia ter pesadelo kkkkkk'. Arrasou na resenha. Ficou muito instigante. Depois dessa história, nunca mais verei o clássico Cinderela do mesmo modo. 😅
👏👏
Perfeita análise, me deu ainda mais vontade de conferir a obra!
EU TÔ TÃO ANSIOSO PARA ASSISTIR DEPOIS DESSE TEXTO. PARABÉNS, LUÍS!