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Protagonismo, criminalidade e Fernanda Montenegro em Vitória

Atualizado: há 2 dias

Entre memórias partidas e identidades reconstruídas, cinema brasileiro traça um retrato firme e sensível das dores sociais que resistem no cotidiano

Fernanda Montenegro e Alan Rocha em novo filme da Globo Play (foto: reprodução Globo Play)
Fernanda Montenegro e Alan Rocha em novo filme da Globo Play (foto: reprodução Globo Play)

“Vitória”, o longa-metragem baseado em uma história real, produzido pela GloboPlay e distribuído pela Sony Pictures, estreou no cinema no dia 13 de março de 2025. O filme é dirigido por Andrucha Waddington e Breno Silveira, e é protagonizado por Fernanda Montenegro. Contando ainda com nomes como Linn da Quebrada (Bibiana), Thawan Lucas (Marquinhos), Alan Rocha (Fábio Gusmão), Sacha Bali (Leonardo) e Laila Garin (Inspetora Laura).

A obra se destaca pelo roteiro astuto, pela direção concisa e pela atuação de Fernanda, além da forma com que aborda o ambiente social, trazendo como vilão, em uma visão que inova, não a criminalidade em si, mas a dificuldade de combatê-la, desenvolvendo seu debate com a profundidade necessária.

Cartaz do filme (foto: reprodução Globo Play)
Cartaz do filme (foto: reprodução Globo Play)

A história se passa no início dos anos 2000, nas proximidades de uma favela em Copacabana, no Rio de Janeiro. Dona Nina (Fernanda Montenegro) é uma senhora que vive sozinha em um apartamento com vista para a comunidade e trabalha como massagista para complementar o valor da aposentadoria e conseguir se sustentar.

Logo no começo do filme, já nos sentimos próximos e conhecemos bem a personagem. Nas primeiras cenas, ela briga com um homem no supermercado, após um desacordo, e é super simpática com a mulher que trabalha no caixa. De volta para casa, ela pega uma leve chuva enquanto conversa com um menino, Marquinhos, a quem dá uns trocados. Isso tudo acontece de forma natural, conduzido muito bem pela direção e por Fernanda.

Dona Nina é uma mulher forte, muito gentil e firme em suas convicções. Vemos, em uma cena também do início do filme, a forma como se apega aos objetos que remetem a lembranças do seu passado. A maneira carinhosa com que ela segura uma xícara (a única que está trincada) evidencia a nostalgia que envolve cada móvel e detalhe de sua casa.

Esse apreço pelo apartamento e por sua história é o ponto de conflito central. Após tomar seu café com bolo de fubá (na mesma cena que citei acima), ouve-se um tiro. Com o susto, a xícara se parte e Nina vai se esconder na banheira de seu lar. A quebra representa bem esse momento em que o dilema começa. A partir daí, Nina irá atrás de denunciar os crimes, colocando em risco sua segurança e sua identidade.

A polícia faz pouco caso - “precisa de provas” -, as quais a personagem de Fernanda Montenegro pretende adquirir com uma filmadora. Grava os crimes da vizinhança entre as persianas de sua janela e entrega as filmagens aos órgãos competentes, que não fazem nada com elas.

Ao insistir na denúncia dos crimes, Nina encontra um jornalista, Fábio Gusmão, e a inspetora Laura, que a informa de que as provas que adquiriu podem denunciar o possível envolvimento da polícia na atividade criminosa da região. Para seguir com a investigação, mantendo a massagista em segurança, Laura precisa inscrever Nina no programa de proteção à testemunha, fazendo-a trocar seu nome, deixar tudo o que tem para trás e começar uma nova vida em outro local do país.

Após muita resistência, Dona Nina é descoberta como “X9” pelos criminosos do morro e decide fugir, adotando o nome “Vitória” como sua nova identidade. O momento em que a massagista entende que não conseguirá se manter no apartamento, tendo que deixar de lado parte de sua história, é representado em uma cena em que, após colar os cacos da xícara que se quebrou no começo, Nina tenta tomar café nela. O líquido passa pelos cacos de porcelana, e a protagonista desaba em si, em mais uma fabulosa entrega da atriz.

O filme apresenta diversos pontos fortes, sendo Fernanda Montenegro um dos principais. A atuação é delicada, mostra diversas camadas da personagem em cada cena, desenvolvendo-a ao longo dos acontecimentos. O timing cômico da atriz também é genial. O longa intercala momentos sérios e cômicos, sem que isso pareça forçado ou que menospreze os temas trabalhados.


A representação da criminalidade no filme


Entre os temas apresentados, “Vitória” se debruça sobre a criminalidade que assola as favelas do Rio de Janeiro. Essa abordagem é feita de forma consciente, mostrando a complexidade de lidar com os delitos da região, trazendo como “grande vilã” a dificuldade que existe no combate ao crime.


Marquinhos e Dona Nina. (Foto por: A Geleia)
Marquinhos e Dona Nina. (Foto por: A Geleia)

No artigo “A guerra de relatos no Brasil contemporâneo. Ou: a dialética da marginalidade”, o escritor e historiador João César de Castro Rocha ressalta a importância de refletir sobre como a marginalidade é representada em obras ficcionais. César aponta um movimento comum dessa representação, que centraliza a violência, explorando o tema a partir da luta do “bem” e do “mal” dentro dos personagens. Para ele, a temática é complexa, e a “crença na velha ordem de conciliação de diferentes”, ou seja, do errado e do correto, desvia os olhos do público de debates sobre a desigualdade social.

Para César, um exemplo de obra que adota essa lógica da “luta de dois lados” é o filme Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, pois centraliza a disputa interna do protagonista Buscapé entre a corrupção e o “bem”. Ele simplifica a discussão sobre a criminalidade trazida na obra original (romance de Paulo Lins) e explora o tema de forma infantil.

Por essa razão, o deslocamento do foco narrativo para o conflito interno de Nina é tão relevante. Sem deixar de abordar o tema de maneira complexa, a narrativa o explora sem sensacionalizá-lo, tornando-o importante para a trama, sem abusar de clichês. A escolha de focar na dificuldade de combater o tráfico enaltece o debate, colaborando para que pensemos em como combater o “crime”, e não o “criminoso”.

Outro ponto que também colabora para a construção dessa relação, indo contra a proposta do filme Cidade de Deus, é o arco de Marquinhos. Amigo de Dona Nina e ainda criança, o personagem demonstra a dificuldade de se manter distante do tráfico de drogas. Ao longo do filme, pela influência do ambiente em que vive e pelas necessidades que enfrenta, o menino começa a usar drogas e a se envolver com os traficantes locais. É importante notar que isso é feito para reforçar a complexidade de se combater o crime, sendo coerente com a abordagem do longa.

Em “Vitória”, a dúvida sobre se Marquinhos entraria ou não na vida do crime (luta do “bem” e do “mal” que passa Buscapé) não existe, nem o questionamento de se ele entregará a protagonista como “X9” aos bandidos. O garoto se mostra um personagem que já está entrando nesse “caminho”, e entrará, assim como também é fiel a sua amiga Nina, que lhe oferece bolo e uns trocados em baixo de chuva. Não olhamos para os conflitos internos do personagem, por uma escolha do roteiro em focalizar outros aspectos que constroem um debate complexo a respeito das questões sociais abordadas.

Neste momento, vale destacar mais um ponto alto do filme. Em relação aos conflitos de Marquinhos, o longa-metragem brinca com as expectativas de quem o assiste, ao mesmo tempo em que é claro em sua posição, muitas vezes, julgando o telespectador por esperar uma abordagem desses dilemas. Em uma das cenas, o jornalista Fábio Gusmão vai ao apartamento de Nina, encontra-a com Marquinhos e estabelece uma conversa que deixa brechas para o jovem entender que algo importante estaria acontecendo (no caso, as gravações feitas por Nina).

Por alguns instantes, o público se questiona se algo vai “vazar”. Isso não acontece, nem é sugerido que poderia ter acontecido. O roteiro trata esse conflito como Nina: se não se olha para ele, ele não existe. Tudo isso enquanto “joga na cara” de quem assiste que não deveriam ter esperado esse dilema na obra. Essa franqueza também é vista no fim do longa, quando a protagonista, fugindo dos criminosos, encontra Marquinhos armado. O jovem a ajuda a fugir antes mesmo que o espectador tenha tempo de duvidar se ele a entregaria.

Uma cena, no entanto, faz isso de forma menos delicada. Nela, o filme sugere que os criminosos descobriram que Vitória grava os delitos pela janela. Ela é sequestrada, apenas para descobrirmos, no final, que queriam que ela realizasse seu trabalho de massagista em um dos traficantes. Esse “te peguei” não tem função narrativa clara, e a abordagem da história de Marquinhos, por exemplo, já descarta a ideia de “certo” e “errado” e repreende o espectador de maneira muito mais delicada. Nessa outra cena, o recurso é usado apenas como artifício cômico. Ainda assim, o filme se mantém fiel à proposta no que diz respeito à criminalidade.

O filme mostra como um simples deslocamento do foco do roteiro já é fundamental na construção de novas narrativas relevantes, que desenvolvam melhor debates sociais sobre, por exemplo, a criminalidade. Ele não deixa de incentivar o combate ao crime, mas o faz também promovendo uma abordagem respeitosa e consciente desse assunto.

À imagem da protagonista, podemos acolher e abraçar Marquinhos, denunciar e combater a corrupção, tendo força para nos colocarmos em conflito, mas sendo firmes na convicção de sermos gentis e preocupados com os personagens do nosso Brasil.

43件のコメント


Perfeito Murilo, já quero assistir

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Excelente resenha Murilo. Parabéns!!!

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Parabéns Murilo muito bom ! Continue assim Murilo, sucesso pra você !

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grlopes
4月25日

Fernanda Montenegro é um ícone do cinema brasileiro! Aos 95 anos, ela continua a nos inspirar com seu talento e dedicação. É um prazer ver o cinema nacional em destaque e a resenha foi perfeita em todos os aspectos. Viva o cinema nacional e viva Fernanda Montenegro!

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Ótima resenha! Adorei!

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Produzido pelos acadêmicos do 5º período do curso de Jornalismo do Centro Universitário FAG, na disciplina de Webjornalismo, sob orientação do professor Alcemar Araújo.

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