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O peso da bondade humana: The Good Place vai além do riso fácil

Atualizado: 19 de mai.

Série questiona o destino após a morte e a nossa capacidade de evoluir moralmente em vida com leveza, humor e profundidade filosófica


Fique tranquilo, você merece estar aqui | Foto: Divulgação
Fique tranquilo, você merece estar aqui | Foto: Divulgação

Resumo

 

Eleonor Shellstrop é uma típica cidadã americana do Arizona, que morre em um acidente envolvendo um caminhão. Acordada por Michael, um ser que se diz o “arquiteto”, em um local misterioso, descobre que a jornada humana não se encerra na Terra, pelo contrário, ela continua em um lugar diferente, chamado de vida após a morte. 

Michael explica que durante a vida, as decisões que tomamos como pessoas possuem um peso que são subtraídos ou adicionados em um contabilizador cósmico. Após a morte, os pontos são calculados e através deles é decidido se a pessoa merece ir para o Good Place (Bom Lugar) ou para o Bad Place (Lugar Ruim). Eleanor foi enviada para o Good Place para aproveitar a eternidade em um bairro perfeito, projetado para garantir a sua felicidade. O responsável por construir este bairro, foi o próprio Michael.


A protagonista logo descobre que houve um engano e que não deveria estar no Bom Lugar, afinal não era uma pessoa tão decente quanto era o esperado. Para conseguir se esconder e continuar aproveitando os benefícios do Bom Lugar, Eleanor conta com a ajuda de um dos residentes do bairro. Chidi Anagonye, que na Terra era um professor universitário de filosofia e ética, passa a ajudar Eleanor a tentar ser uma boa pessoa. 


No bairro em que mora, Eleanor irá conhecer mais dois personagens importantes, o monge budista, Jianyu Li, e a socialite, Tahani Al-Jamil. 


Depois de vários conflitos, a protagonista descobre que na realidade nunca esteve no Bom Lugar. Tudo era um plano maléfico, arquitetado por Michael, que é um demônio do Lugar Ruim, para torturar, tanto ela quanto Chidi, Tahani e Jason (que estava apenas fingindo ser o monge Jianyu). O objetivo de Michael era causar tanto estresse nos quatro personagens a ponto de serem infelizes no lugar que deveria ser o mais perfeito do universo. 


No decorrer da série os personagens percebem que o sistema é problemático e formulam um novo método de avaliação da bondade. Eles finalmente conseguem ir para o Bom Lugar por conseguirem salvar as almas de toda a humanidade. 


Análise


Em um contexto baseado em um universo hipotético do pós-morte. The Good Place, série escrita por Michael Schur, mesmo autor de Brooklyn-99,  mistura humor e comédia com filosofia. Estreou no dia 19 de setembro de 2016, em exibição através do canal americano NBC. Aclamada, a série acumula vários prêmios, como Critic 's Choice Awards, TCA Award e People 's Choice Awards. No site de críticas de filmes e séries Rotten Tomatoes, conquistou incríveis 97% de aprovação da crítica especializada e 90% do público popular. Atualmente está avaliada com 8,2 no IMDb.


Essa série, desde o momento que eu a assisti na Netflix, se tornou uma grata surpresa para mim. Estava apenas buscando uma Sitcom para relaxar e dar risada e acabei me deparando com lições valiosas sobre amizade, fidelidade e fé.


Durante as quatro temporadas e os 53 episódios, The Good Place mostrou que soube desenvolver um começo, meio e fim amarrando o enredo com precisão, usou de signos e simbologias e aprofundou cada personagem individualmente. É possível sentir essa evolução no decorrer e em momento algum há uma regressão da qualidade narrativa. Na área de comédia, as piadas são bem escritas e fazem sentido com o contexto, elas constroem identificação com os personagens de forma leve e imperceptível. A moral da série é distribuída uniformemente entre as temporadas sem perdermos o real problema que está sendo explorado. 


O ser humano é bom ou mau? 


Um dos principais pontos levantados por The Good Place, é capacidade humana em evoluir eticamente. Será que a humanidade tem salvação? O que nos motiva? Como podemos ser melhores?


Como uma jovem estudante de jornalismo, um dia acabei me deparando com alguns confrontos internos, que antes, envolta em minha própria imaturidade de menina, nunca havia refletido profundamente. Com o tempo, buscando me manter atualizada dos acontecimentos ao redor do mundo, passei a consumir diferentes tipos de notícias - algumas boas, mas muitas outras ruins. Aos poucos, comecei a sentir que pedaços de mim estavam morrendo. 


Correndo o risco de soar melancólica demais, senti minha esperança se desprendendo de mim e se esvaindo aos poucos. É difícil continuar a acreditar que a humanidade tem um futuro digno, quando constantemente nos deparamos com tanta desigualdade, fome, violência, guerras. Como posso continuar tentando fazer do mundo um lugar melhor, se todos os esforços de pessoas bem intencionadas são ofuscados por coisas ruins? Acho que era esse o meu sentimento. Sentimento que começou a crescer. Até eu assistir a essa série pela terceira vez. 


Eleanor Shellstrop era uma pessoa muito egoísta. Não se importava com a necessidade dos outros nem com as consequências de suas atitudes. Mas foi quando, o fatídico dia em que tudo estava prestes a desmoronar e Michael estava pressionando para que a pessoa “infiltrada” no Bom Lugar se entregasse, Eleanor fez algo imprevisível: ela finalmente olhou para o outro. Vendo o desespero de Chidi, que não aguentava mais manter esse segredo, pela primeira vez sentiu empatia. Se entregou voluntariamente. Este foi apenas o primeiro de muitos dos pontos altos da jornada de evolução de Eleanor, que viveu a vida toda como uma golpista.


Esse momento não impactou apenas a protagonista. Michael, que arquitetou o projeto “The Good Place”, criou o cenário com base em dados do comportamento de cada um dos quatro personagens principais (Eleanor, Chidi, Tahani e Jason). Todas as técnicas de tortura previam que Eleanor sempre tomaria a pior decisão possível. Ele nunca imaginou que ela realmente se entregaria. Esse sinal de bondade espontânea foi o suficiente para Michael, o cético demônio, começar a se questionar sobre o sistema.


O encantamento de The Good Place está nos detalhes ao longo dos episódios. Chidi melhorou a Eleanor, mas ela também melhorou ele. O principal defeito de Chidi era a sua crônica indecisão. Atormentado, sempre magoava as pessoas com sua paralisia moral. Mas ao lado de Eleanor, passou a tomar decisões mais rápidas e assertivas. Ele a amava e já não tinha dúvidas sobre seus sentimentos.


E não foi somente Chidi e Eleanor que mudaram, mas os outros ao redor deles também passaram por transformações. Até mesmo Janet, um ser artificial programado apenas para servir ao bairro, se tornou mais sensível e humana. Todos evoluíram juntos. 


Michael reiniciou o experimento 802 vezes, tentando manipular, ajustar estímulos e prever comportamentos. Porém, havia algo que ele nunca conseguia controlar: em todos os cenários criados, os quatro humanos sempre se encontravam, se apoiavam e acabavam tomando uma decisão que não condizia com as as previsões de seus dados comportamentais registrados durante a vida na Terra. 


O primeiro erro percebido no sistema de pontos do pós-vida é que ele ignorava justamente a capacidade humana de se aprimorar. Além disso, ele não considerava o contexto cultural, sociológico e ético no qual a pessoa era inserida. No final, o indivíduo realmente era ruim ou nunca teve a oportunidade de ser melhor? 


Em dado momento da história, houve a necessidade de usar a fé. No episódio “Leap to Faith”, ou Salto de Fé, Michael teve uma chance de trair os humanos, enquanto eles tiveram a mesma de desconfiar dele. Porém, Eleanor lembra de Søren Kierkegaard e toma a decisão de aplicar umas das ideias mais difíceis propostas pelo filósofo. Decidir confiar em alguém sem garantias racionais. Esta foi a oportunidade que Eleanor deu para Michael de ser alguém melhor.


“Eu confio em você, Michael”. (Eleanor Temp 2, Ep 8).


O Bom Lugar teoricamente reunia as pessoas mais admiráveis que existiram, mesmo que manipulado pelo Michael, ainda precisava parecer com um ótimo lugar para morar. Eleanor, ao se deparar com tanta gente perfeita, em vez de agir com afastamento (como fazia quando estava viva), se constrangeu. Nesse ponto, a série nos revela que quando estamos inseridos em um ambiente positivo a tendência é espelhar estes comportamentos. Isso nos transforma. 


The Good Place abre um questionamento perigoso: o ser humano é bom ou é mau? Hobbes diria que o “homem é o lobo do homem”, Rousseau diria que “nascemos bons, mas a sociedade nos corrompe”. Mas a série diz “e se estamos fazendo a pergunta errada?” Ela tem uma respostas poderosa:


“O que importa não é se as pessoas são boas ou más. O que importa é se elas estão tentando ser melhores hoje do que foram ontem”. (​Michael Temp 4, Ep 6).


A frase foi empregada em um momento em que tudo começa a ruir. Porém, os humanos se unem e não desistem de se apoiar. O verbo que Michael usa é tentar. Eles já não sabiam se todo o esforço que tiveram no final valeria a pena. Para mim, essa foi a resposta! Tentar - por nós, pelos outros - é o que mantém a esperança viva. Acredito que isso é o que nos torna tão humanos.


Como em qualquer outra profissão, sempre há desafios a serem enfrentados dentro do jornalismo. Mas The Good Place me deu o que eu precisava, a esperança de que atitudes positivas influenciam e que pessoas não nasceram prontas. Há um lugar e um alguém para elas serem e estarem. E, sinceramente? Eu desejo ser uma dessas pessoas. Que mesmo errando, ainda tenta ser melhor no dia seguinte. Fazer o melhor. Crer no melhor. 

 

O Final


The Good Place tem um final emblemático. Após o grupo salvar todas as almas do universo e comprovar as fraquezas do sistema, eles recriam um novo modelo de avaliação moral. Neste, a bondade não é avaliada de forma rígida e descontextualizada, mas em um ambiente adaptado e justo, com desafios condizentes com a realidade do indivíduo. 



O Bom Lugar é ter tempo com as pessoas que amamos | Foto: Reprodução
O Bom Lugar é ter tempo com as pessoas que amamos | Foto: Reprodução

Eleanor uma vez disse para Michael, que quando estava na Terra, ouvia uma voz dentro de sua cabeça toda vez que ia cometer um erro. Essa era a consciência dela desejando levá-la a ser uma boa pessoa. Aos poucos, quando as suas atitudes começaram a mudar, aquela voz, que tanto a incomodava, já não chamava mais a atenção. Desde então, ela fazia o possível para que não voltasse, pois isso significava que ela estava tomando as atitudes corretas. 


No fim, The Good Place não trouxe a solução concreta para os muitos problemas abertos. Mas, nos deu a esperança de buscarmos pela bondade existente em cada um de nós e, mesmo quando tudo parece não ter sentido, ainda há uma voz, mesmo que baixinha, nos dizendo: “você ainda pode ser mais do que tem sido”. Essa voz pode ser apresentada de muitas formas para além do que vemos na série, ela pode ser uma lição de alguma experiência aprendida, um reflexo da educação que recebemos ou um grito de indignação da nossa própria alma frente ao que observamos ao mundo ao nosso redor. O quanto temos dado atenção para essa voz? 


Talvez, o que nos define como humanos não seja sermos bons ou maus, mas se estamos incansavelmente tentando.   



8 Comments


Assisti essa série 2 vezes e logo mais quero rever! Ela é muito boa, subestimei ela no meio, mas o fim da primeira temporada me pegou de um jeito que não pude largar mais. A série continua sendo espetacular, e as reflexões são parte fundamental do enredo, você participa delas junto com os personagens. Ótimas reflexões e ótimo texto. Parabéns!

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Luiza, que texto extraordinário. Você vai muito além da análise de uma série: constrói uma reflexão sobre ética, humanidade e esperança com maturidade, sensibilidade e fluidez narrativa. A forma como costura filosofia, experiências pessoais e contextos jornalísticos revela uma escritora atenta ao mundo e corajosa em se vulnerabilizar. Seu olhar é generoso, crítico e inspirador. Parabéns por transformar entretenimento em pensamento - e por nos lembrar, com delicadeza e força, da importância de tentar ser melhor a cada dia. Siga escrevendo assim: com alma, propósito e escuta.

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Que analise sensível, agora fiquei interessada em assistir a serie para ver os detalhes retratados!!

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Essa série é demais! Super indico

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Muito bom!

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Produzido pelos acadêmicos do 5º período do curso de Jornalismo do Centro Universitário FAG, na disciplina de Webjornalismo, sob orientação do professor Alcemar Araújo.

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