Inteligência ou somente artificial?
- Emanuelly Aline Gomes
- há 2 dias
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Atualizado: há 1 dia
A inserção das I.A.s nos meios criativos e a desumanização da arte de criar

O último século trouxe ao mundo inovações que jamais caberiam no imaginário humano. Entre elas, o rádio, a televisão, a internet e tudo o que se originou a partir dela. Agora, no século XXI, as criações se tornam realidade a todo instante, e a chegada de uma nova tecnologia já não é mais recebida com a mesma empolgação ou credibilidade. Afirmar com certeza que algo visto nas redes sociais ou em sites é definitivamente real tornou-se quase impossível - sobretudo, após o desenvolvimento de programas de edição de foto e vídeo. Porém, isso também abriu portas para um novo leque de possibilidades: de criação, apuração e comprovação de fatos ou informações.
Assim, a necessidade de criar - e a arte - está com a humanidade desde os primórdios da nossa existência.
Quando nossa espécie começou a erguer-se e a andar sobre dois pés, a arte já fazia parte do nosso cerne, como uma consciência além da consciência.
Logo surgiu a necessidade de transmitir, de forma mais palpável, as simbologias do dia a dia, antes disseminadas apenas pela oralidade. Assim nasceram as pinturas rupestres, e, posteriormente, as músicas, os contos - e a arte se tornava cada vez mais necessária para transmitir nossas aventuras e vivências e, assim, compreender o que havia ao nosso redor. Com o avanço das tecnologias, essa necessidade não foi esquecida, mas misturou-se às demandas de mercado, passando a ser valorizada não mais pela beleza ou pela emoção transmitida, mas pela lógica da oferta e da procura. O que, em séculos passados, era considerado nobre - algo que representava luta, status, avidez e a própria história - hoje é, muitas vezes, relegado a designs de produtos, enquanto aqueles que usam a arte como forma de expressão são taxados de “quem não tem o que fazer”.
Os avanços tecnológicos, por sua vez, ganharam uma nova ascensão com o desenvolvimento da Inteligência Artificial. Essa criação foi prometida como uma ferramenta capaz de transformar completamente os ambientes de trabalho que dependem da inteligência humana. Afinal, qual seria a necessidade de manter dez pessoas em um projeto que, com auxílio da IA, poderia ser realizado por apenas duas ou três, reduzindo consideravelmente os custos de produção? Qual é o limite dessa substituição? A resposta é que, até hoje, não sabemos.
Assim como aconteceu no início da internet, o acesso súbito à IA pela população tem gerado problemáticas que jamais imaginaríamos.
O uso da internet para alimentar as inteligências artificiais as transformou em ferramentas de pesquisa robustas, capazes de realizar, em minutos, processos que antes demandariam horas.
No entanto, a utilização da IA para criação de textos, artigos e demais conteúdos que requerem apuração humana é danosa para o futuro. Ninguém gostaria que seu médico utilizasse essa ferramenta para escrever um artigo acadêmico sem realmente se aprofundar na pesquisa do tema.
Além disso, a falta de legislação e de transparência sobre as fontes utilizadas gera um sentimento de incerteza - especialmente, em um cenário onde ainda se discute os próprios limites da internet e sua fiscalização. Desde 2020, no Brasil, quando diversos episódios de desinformação e negacionismo científico foram disseminados online durante a pandemia de Covid-19, o debate se intensificou. Os discursos de ódio e a desinformação espalhados pelas redes culminaram na criação do Projeto de Lei nº 2630/2020, conhecido como “PL das Fake News”, que busca monitorar as big techs que controlam as principais redes sociais do país, como Facebook, X e WhatsApp. Nada disso, porém, ainda é concreto.
Isso nos leva a outra questão: como se aplicam as leis de plágio aos monopólios de inteligência artificial? Recentemente, sites de IA passaram a não apenas desenvolver textos ou funcionar como ferramentas de pesquisa, mas também a “criar” imagens e vídeos a partir de referências disponíveis na internet. Com isso, seu uso tornou-se recorrente em diversos setores - inclusive, nos artísticos. Hoje, é comum encontrarmos textos, imagens e até mesmo vídeos total ou parcialmente produzidos por IA, tendo como base obras de autores humanos, reconhecidos ou não.
O caso mais explícito de plágio por IA ocorreu no último mês, quando viralizou, em diversas redes sociais, um filtro que transforma imagens em desenhos no “estilo Studio Ghibli”. Isso reacendeu o debate sobre o limite entre referência e cópia. O Studio Ghibli, famoso por suas animações infantis, possui um estilo próprio e altamente reconhecível, criado por Hayao Miyazaki, desenhista e animador consagrado. As “obras” geradas por IA copiam descaradamente um estilo que levou anos para ser desenvolvido e refinado. No entanto, por se tratar de uma tecnologia recente, ainda não há legislação específica que aborde plágio ou segurança da informação nesses casos. A youtuber e mestra em literatura Louie Ponto se posicionou contra esse uso:
“Eu não entendo como e nem por que a lei é diferente para uma pessoa, ou uma pequena empresa, e para uma empresa gigante, responsável por uma ferramenta de inteligência artificial [...]; se eu cometesse plágio, eu precisaria lidar com as consequências jurídicas desse crime, e o que é a inteligência artificial generativa se não plágio?”, declarou.
A aplicação da IA em áreas como design, ilustração, animação, tradução, vídeo e produção textual já tem impactado diretamente o mercado de trabalho. Na Índia, o CEO da Dukaan, uma startup de comércio eletrônico, demitiu 90% da equipe de suporte após a implementação de um chatbot de inteligência artificial, que, segundo ele, responde aos clientes com mais agilidade do que os funcionários. O portal Rest of World publicou um artigo mostrando que, na China, ilustradores de videogames começaram a perder seus empregos, recebendo propostas de trabalho por apenas um terço do valor anterior para corrigir erros em imagens geradas por IA. Em escala global, a inteligência artificial também tem sido usada na produção de notícias e textos publicitários - com o objetivo, muitas vezes, de substituir jornalistas e redatores.
De acordo com um relatório publicado em setembro de 2023 pela JournalismAI, baseado em uma pesquisa com 105 organizações jornalísticas de 46 países, mais de 75% dos entrevistados afirmaram utilizar IA em pelo menos uma etapa da cadeia jornalística - seja na apuração, produção ou distribuição de conteúdo.
Apesar de tudo, a inteligência artificial, como diversas tecnologias anteriores, pode sim trazer benefícios reais para a sociedade e para o meio artístico - desde que seja usada como ferramenta de apoio, e não como substituição. Até que as regulamentações necessárias sejam implementadas - sobretudo, no que diz respeito à segurança da informação e à proteção contra o plágio - é importante valorizar e remunerar adequadamente os profissionais que atuam nas áreas mais impactadas.
A IA pode até auxiliar o humano, mas jamais carregará aquilo que temos de mais genuíno: a capacidade de criar.
Você trouxe à tona um debate que merece muita atenção. Parabéns pelo texto, Manu!
Ótimo texto Manu! Parabéns
Que texto potente, Emanuelly! A tua reportagem faz um retrato sensível e necessário sobre o impacto da inteligência artificial no universo criativo. A maneira como você resgata o valor ancestral da arte, contrapondo-o aos riscos da desumanização tecnológica, é de uma lucidez impressionante. Cada trecho evidencia o seu olhar crítico e, ao mesmo tempo, empático — algo raro e valioso em tempos de tantas transformações. Parabéns por ser porta-voz à inquietação de tantos profissionais e por defender, com tanta clareza, o que nos torna humanos: nossa capacidade de imaginar, sentir e criar.
Muito importante levantar essa questão !
Adorei o texto