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Foto do escritorRubia Inomata

Casablanca: uma história de resistência

A única videolocadora de Cascavel, no Oeste do Paraná, sobrevive ao tempo e à era dos streamings


Reportagem finalista do 11º Prêmio Sebrae de Jornalismo, na categoria Jornalismo Universitário, na etapa Paraná!

Início da década de 1970. A chegada das cores às primeiras transmissões de televisão encantava os brasileiros. Poucos eram os privilegiados que podiam sentir as tonalidades, as vibrações e a intensidade das cores nas telas. Dentre eles, não estava o pequeno Devair, de sete anos de idade, que percorria os dois quarteirões de sua casa até o bar do seu Heitor para encontrar um dos seis aparelhos de TV que existiam na cidade. Mesmo sem a magia das cores, o televisor da Colorado RQ, típico da época, virou clássico naquele bar e a exibição de programas apenas em preto e branco não reduzia o entusiasmo do menino pela televisão, muito menos impediu o surgimento de uma grande paixão que transformaria o rumo de sua vida.

Foi naquele bar que o garoto tomou seu primeiro gole de Coca-Cola. O frescor que descia pela garganta comprovava o sentido da “felicidade engarrafada”. De frente para a TV, enquanto se deliciava com o refrigerante, o menino foi envolvido por um frenesi ao deparar-se com os encantos da sétima arte. Era seu primeiro contato com um filme. Naquele instante, o amor pelo cinema dominou Devair Aparecido Vanzella de Assis, que ficaria conhecido como Assis Ricardo, o protagonista da história da Casablanca, a última locadora de filmes do município de Cascavel, no Oeste do Paraná.

Ao longo dos 33 anos trazendo a essência do cinema para os lares dos cascavelenses, a videolocadora Casablanca é sinônimo de resistência. Resistiu aos primórdios da pirataria, à praticidade da internet e às plataformas de streaming. Atualmente, conta com mais de 18 mil filmes no acervo e permanece vivo os costumes que aos poucos são esquecidos pela maioria.

A Casablanca, assim como a obra-prima do cinema, sobrevive ao tempo e transformou-se em uma relíquia, situada na principal rua da cidade, a Avenida Brasil, número 3827. Desde 2006, é o ponto de encontro de amantes do cinema. Mas, a história da única videolocadora aberta de Cascavel havia começado muito antes dos anos 2000.


ATO I: Paixão

Em Ubiratã - PR, cidade-natal de Devair, no Centro-Oeste paranaense, o bar do seu Heitor foi cúmplice de seu amor pelo cinema. Ao mudar-se para Cascavel, em 1975, o garoto descobriu um mundo além das telas. Como em um passe de mágica, o menino Devair deixou de ser espectador e se transformou em personagens nas ribaltas do teatro, onde se descobriu como ator e se destacou pela eloquência que, mais tarde, o levaria a milhares de lares da região.

Aos 20 anos, sua voz chegou às rádios e se popularizou na antiga emissora Verdes Campos, como o locutor que tocou o primeiro disco ao vivo na cidade, nos anos 80. E foi nos anos como radialista que nasceu o nome artístico Assis Ricardo e a oportunidade de fazer de sua paixão pelo cinema, um ofício.

“Era inverno de 1990”, conta Assis, ao relembrar das origens da locadora. Os fios de cabelo grisalho revelam as marcas deixadas pelo tempo. Hoje, aos 60 anos de idade, cada memória ao lado da Casablanca é preservada, como uma fita cassete que, mesmo rebobinada, é cuidadosamente conservada.

O pontapé inicial para a fundação da locadora deu-se com a compra de um aparelho de videocassete. Na época, o objeto ainda não era tão popular, mas, como um roteiro previsível, Assis sentia que grandes possibilidades se aproximavam no ramo do cinema e dos negócios. Fitas e mais fitas de filme foram compradas, construindo um acervo de 160 títulos. Ao lado de seu amigo e sócio-proprietário, Estanislau Chrusciak, abriram-se as portas da videolocadora na rua Castro Alves, no centro da cidade. Talau, como era conhecido, entrou na sociedade e confiou nas mãos de Assis a missão de nomear e cuidar da casa de filmes.

“Eu rabiscava o papel com várias ideias, mas nenhuma tinha um eco. Tinha que ser um nome que reverberasse”, detalha Assis.

Mais uma vez, a televisão foi determinante para seu destino. Numa noite de domingo, como de costume, ele assistia a um programa de esportes na Globo. O anúncio da próxima atração da noite entra no ar: “Assista agora: Casablanca”. Ao ouvir a locução, na clássica voz de Dirceu Rabelo, Assis teve a certeza: “falou pouco, disse tudo”.

No dia seguinte, o nome já estava registrado. A popularidade proporcionada pela profissão de radialista fez com que Assis Ricardo conquistasse uma clientela fiel logo nos primeiros meses de funcionamento. Porém, foi o seu conhecimento de cinema que tornou a Casablanca um tesouro que perdura até hoje. Sabedoria que adquiriu não apenas na frente das telas, mas também dentro delas.

Cada filme distribuído nas prateleiras, entre os milhares que se encontram na locadora, existem grandes histórias, que marcaram o cinema e também a vida de Assis. Em especial, o longa-metragem “Curitiba Zero Grau”, de 2012, o qual ele faz questão de expor com um cartaz na entrada da Casablanca. Logo nas primeiras cenas do filme, o conhecido rosto de Assis é transformado no personagem Mello, ao lado dos atores Jackson Antunes, Edson Rocha, Lori Santos e Diegho Kozievitch.

A produção do filme foi realizada integralmente na capital paranaense e apresenta a história de quatro homens, que vivem em meio ao trânsito: um comerciante de carros, um motoboy, um motorista de ônibus e um catador de papel. Eles não se conhecem, mas seus destinos se cruzam em uma noite fria, em Curitiba.

Em sua filmografia, também consta a atuação no filme “A Saga”, que remonta a colonização da região Oeste do Paraná, em especial, de Cascavel e de seus fundadores.  O filme é um registro que mantém vivo o passado e busca eternizar as origens da cidade. Essa obra é uma entre os oito longas-metragens os quais Assis atuou e contribui para o acervo e história do cinema paranaense.

Muito mais que um proprietário de uma relíquia que sobrevive ao tempo e um apaixonado pela sétima arte, “Assis Ricardo faz cinema”, como diria a canção de Chico Buarque. Dos palcos do teatro, ao som das rádios, às telas de cinema. Assis é um personagem tanto da ficção quanto da vida real, com uma jornada cheia de dramas, desafios e grandes reviravoltas.



Assis Ricardo no filme paranaense Curitiba Zero Grau (2012), dirigido por Eloi Pires Ferreira.

Foto: Rubia Inomata e cenas do filme Curitiba Zero Grau (2012)



ATO II: Crise

As locadoras de filmes são raridades em muitas cidades, restando poucas unidades pelo Brasil, inclusive nas grandes metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo. Aos poucos, a facilidade da internet e a comodidade das plataformas de streaming se tornaram as maiores concorrentes dos estabelecimentos. Porém, engana-se quem pensa que os desafios surgiram recentemente, na última década.

Beirando o início dos anos 2000, a Casablanca sentia os impactos de uma crise financeira que assolava o país: a desvalorização do real. A queda da moeda fez muitos brasileiros pouparem o bolso devido a falta de perspectiva para os próximos meses. No auge das videolocadoras, o mercado presenciou cortes de gastos destinados ao lazer. O filme do final de semana foi extinto da rotina, sem previsão de volta.

A instabilidade trouxe a dúvida para Assis: “a locadora que abria de segunda a domingo fecharia as portas para sempre?”.

Parecia o fim dos tempos e ali se encerraria um filme de quase uma década. Mas, como em uma boa obra de cinema, surge uma grande reviravolta. Um filme que chegaria às prateleiras impediria o naufrágio da locadora: o Titanic.

“O navio do Titanic afundou de um lado e a Casablanca emergiu do outro”, relata o proprietário, com brilhos nos olhos ao lembrar do momento histórico da videolocadora. “O filme foi lançado em 1998 e foi sucesso de bilheteria. Mas não em Cascavel”, complementa. Fenômeno ao redor do mundo, o longa-metragem era inacessível e não alcançava as regiões além dos grandes centros urbanos, especialmente quando a cidade não tinha mais salas de cinema, como era o caso de Cascavel.

Exibindo a última sessão em 1996, o tradicional Cine Delfim fechara as portas em decorrência da crise financeira e da diminuição de público. Na época, o único cinema era localizado no “coração de Cascavel", na região central da Avenida Brasil, A diversão da garotada nos anos 80 perdeu sua popularidade e virou um registro na história do município.

O Titanic só chegaria oficialmente em solo cascavelense depois de uma longa espera, no ano de 2004. Na esperança de retornar ao sucesso da locadora, Assis fez uma jogada arriscada. Comprou cem cópias do filme.

“Ou o negócio aqui anda, ou afundamos com o Titanic”, pensou.

A encomenda chegou preenchendo a entrada da Casablanca. Caixas e mais caixas de fitas cassetes. Detalhe: fitas duplas. Ou seja, o filme era tão extenso que precisava de duas fitas para gravar as três horas de duração.

Com a fartura de cópias nas prateleiras, a Casablanca surfou na onda do sucesso do Titanic, o filme mais aguardado, não só pelos cascavelenses, mas por toda a região. “Fizemos sublocações, isto é, muitas pessoas saíam da cidade para buscar algumas cópias e, depois, fazer aluguéis onde moravam. Assim as fitas rodavam por aí e a brasa voltou a pegar”, relembra Assis.

 

ATO III: Resistência

Dois anos após o fenômeno do Titanic, o sócio-proprietário Talau decide seguir outros rumos. Agora, a locadora estaria unicamente nas mãos de Assis Ricardo, que decidira transferir para a atual localização, na Avenida Brasil. Entre tantos desafios encontrados no percurso, a Casablanca mantém-se firme, perpetuando os costumes dos aficionados por filmes e despertando o encanto de outros, tal como nos anos 90 e 2000.

E foi pelo fascínio que surgiu nas prateleiras de Assis que Eduardo Romero descobriu-se como um cinéfilo. Aos 16 anos, em 1994, Eduardo pisou pela primeira vez na Casablanca, junto de seu irmão, Frederico. Entre as inúmeras fitas cassetes, passava horas observando as capas de filmes e conversando com Assis. Atualmente, com 45 anos, Eduardo é empresário no ramo imobiliário e, apesar da praticidade das plataformas de streaming, preserva o hábito de uma visita semanal, a qual nunca entra e nem sai de mãos vazias.

“Quando eu falo que ainda alugo filmes, tem gente que me pergunta: você é louco?”, relata em meio a risos.

A cada encontro na locadora, Eduardo é envolvido pelo grande acervo filmográfico e pela “enciclopédia chamada Assis”, como ele mesmo apelidou o proprietário.

Em uma consulta recente ao seu cadastro, Eduardo se impressiona com as mil locações realizadas nos últimos três anos e se emociona ao descobrir que a Casablanca é a única locadora de filmes de Cascavel. “Me sinto orgulhoso de fazer parte de uma resistência aos costumes. Ela não é a única por acaso. É muita qualidade, diversidade e muito do Assis. Esse homem é uma peça rara, assim como a própria locadora, e é um grande amigo, coisa que o streaming não faz”, enfatiza.


“Assis merece reconhecimento, estamos aqui por causa dele”, afirma Eduardo. | Fotos: Rubia Inomata


Enquanto a clientela de longa data continua a frequentar a casa de filmes, Assis Ricardo busca alcançar ainda mais pessoas que, muitas vezes, desconhecem os DVDs e nunca visitaram uma locadora. A entrada, repleta de cartazes de filmes, desde sucessos recentes de bilheteria até os clássicos do cinema, atraem olhares curiosos para dentro do estabelecimento. Prontamente posicionado em seu balcão, que tem vista para o corredor de entrada, Assis consegue ver todos que por ali passam, inclusive os que apenas admiram pela vitrine.

“Podem entrar!”, chama. Assim, os admiradores iniciam uma viagem no tempo e pela história do cinema, guiados por Assis Ricardo. “Aqui, filme não é problema nem o aparelho de DVD, pois temos trinta aparelhos disponíveis, os quais eu não cobro. Então, é só ter vontade”, explica. O novo sistema foi implementado durante a pandemia de Covid-19, quando percebeu que poderia acolher clientes ao oferecer o dispositivo.

O encanto das locadoras, que parece cair no esquecimento, é mantido vivo pelo empenho de Assis, como um ato de resistência. São décadas de devoção pelo cinema: do bar do seu Heitor à Avenida Brasil, hoje, com 60 anos de idade, Assis e Casablanca são como um só. Entrelaçados pelo destino e pela paixão à sétima arte.

Quando perguntam os planos para o futuro, Assis responde: “o futuro é igual um ‘the end’. Todo bom filme tem um começo, um meio e um fim. Então, vamos esperar para ver até onde vai”. Mas, se a vida de Assis é como um filme, certamente, ele nunca sairá de cartaz.


Acervo conta com 18 mil filmes e 30 aparelhos de DVDs. | Fotos: Rubia Inomata


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2 Comments


Mariele Santos Cardoso
Mariele Santos Cardoso
Jun 01

Parabéns pelo texto Rúbia, excelente assunto 😻


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Alcemar Dionet De Araujo
Alcemar Dionet De Araujo
May 27

Que texto impecável. Todo filme tem um começo, meio e fim. E as locadoras, terão seu fim?

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