Comida caseira: um retrato da ancestralidade
- Luiza Bernardi Vaz
- 14 de jul.
- 3 min de leitura
Entre aromas e memórias, moram lembranças que o tempo não levou

Pego o celular, o microfone e caminho até a área externa da minha casa, temos um espaço para churrasco que é quentinho, aconchegante e tem uma grande cozinha. Antes mesmo de chegar, escuto o barulho de tigelas no mármore da bancada, o som de ingredientes sendo posicionados em recipientes e barulho de folhas de papel, recheadas de receitas.
Quando chego à porta vejo uma senhora de cabelos loiros, baixa estatura e belos olhos azuis, que usa uma touca de cozinha, um óculos pequeno e um suéter fofinho. “E aí vovó, está pronta?”, pergunto ansiosa. Antes de me responder ela organiza milimetricamente a bancada de ingredientes e dá uma olhadinha em seu valioso caderno de receitas, mesmo sabendo que já tem o que precisa gravado em sua mente.
“Pode começar”, me responde. Posiciono a minha entrevistada, ligo o microfone, faço um ajuste no enquadramento e finalmente dou o play. “Hoje nós vamos fazer o agnoline da vovó”, diz Neuli Moretto Bernardi. Neuli tem 75 anos e aprendeu a cozinhar muito nova. Prestava atenção em cada detalhe das massas que sua mãe fazia, ajudava na cozinha e sempre teve interesse em saber como preparar uma boa refeição.
Essa receita de agnoline foi escrita por mais de uma cozinheira e passou de geração para geração. Minha avó uniu os ingredientes que a sogra dela utilizava com o modo de preparo da minha bisavó, bastou um ajuste aqui e outro ali para ter a massa e o recheio ideal. “Hoje em dia é mais prático, o pessoal pode pegar receitas na internet. Mas aqui, no meu caderno, tem alguns segredinhos que ninguém mais sabe”, conta Neuli.
Vovó é especialista em comida caseira, a sua certificação? É produto do tempo. No total ela tem 5 cadernos de receitas, todos abrigam temperos ancestrais da família, das vizinhas e o que ela mesma desenvolveu. Começou a trabalhar com 8 anos, o processo foi doloroso, mas também auxiliou em sua evolução na cozinha. Era contratada por mulheres, que tinham recém se casado ou acabado de dar a luz ao primeiro filho, para fazer serviços domésticos e comandar a cozinha.
Por ter uma grande família e trabalhar para famílias grandes, nunca fez comida em pouca quantidade. Neuli não recebia salário, mas recebia muitos elogios. A comida caseira bem preparada une a família na mesa, está presente em todo almoço de domingo, nunca falta em casa de vó e cria memórias inesquecíveis. Lembro-me que quando ela me ensinou a fazer agnoline eu ainda não tinha completado 10 anos.
Eu, minha mãe e ela nos encontrávamos no coração da casa, a cozinha. Cada uma se posicionava ao lado da mesa estrategicamente, conforme sua função. Vovó cuidava da massa enquanto eu e minha mãe éramos responsáveis por seu recheio. Fazíamos o coração da casa virar uma pequena fábrica de massas, realizando o mesmo processo diversas vezes e conversando sobre assuntos variados em meio à atividade. Comida caseira também cria laços.
“Esse cilindro tem 40 anos, eu peguei ele como lembrança do meu pai”, comenta Neuli enquanto passa a massa, já pronta, pelo cilindro. Recheia o agnoline e comenta “cozinhar é um passatempo muito gostoso, se eu não cozinhasse eu me sentiria inválida. Eu gosto de cozinhar com tempero caseiro, o tempero feito em casa é mais saudável e dá mais sabor à comida”.
A culinária brasileira é um reflexo da miscigenação de povos e culturas, podendo unir o melhor ingrediente de cada etnia em um único prato. Uma pesquisa realizada em 2021 pela consultoria estratégica EY-Parthenon revelou que 70% dos brasileiros procuram não comer fora de casa, preferem priorizar o preparo do alimento a domicílio.
No Brasil a mesa cheia sempre teve significado, mesmo que muitas famílias não tenham condições para preenchê-la com comida, o amor é gratuito e farto. Ele está na receita, no modo de preparo, no resultado final e também encontra-se na barriga cheia, satisfeita após provar de um tempero que não se compra em mercado nenhum. Encontra-se somente nas prateleiras da ancestralidade.
“Agora você coloca em uma forma e a envolve em papel filme, aí pode congelar por quanto tempo quiser”, completa Neuli quando chega ao fim da primeira receita.
Desliguei a câmera, guardei o microfone, lavei minhas mãos e fui para perto da mesa. Estava ansiosa para colocar a mão na massa. Nesse dia fizemos 2 receitas de agnoline, servindo pelo menos 1 família completa. É muito bom comer agnoline, mas poder prepará-lo em casa ao lado dela é ainda melhor.
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