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Além da pele: relatos de luta e resistência

Atualizado: 22 de mai.

   O racismo é uma ferida que nunca cicatriza, deixando marcas permanentes na alma das vítimas


Mariele Cardoso, ainda com remanescentes do que o racismo a causou na alma |  Foto: Claudia Resena
Mariele Cardoso, ainda com remanescentes do que o racismo a causou na alma |  Foto: Claudia Resena

Os cabelos cacheados, os olhos cor de ônix e a pele em diferentes tons de chocolate - se observar bem - são características presentes na maioria da população brasileira. Segundo o Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 55,5% da população se considera negra ou parda. Apesar de serem maioria, são também os que mais sofrem com o preconceito, ainda presente de forma alarmante na sociedade. Um preconceito que fere, que marca, que deixa cicatrizes eternas.

“Por que não alisa?”

“Desde sempre zoavam muito o meu cabelo, que é crespo. Eram muitos comentários ruins e isso afetava demais a minha autoestima. Hoje em dia, é menos, mas ainda é perceptível a exclusão. Você chega a um lugar e as pessoas te olham de um jeito... De vez em quando, ainda surgem comentários como: ‘Por que você não alisa?’”, conta Mariele Santos, estudante do 6º período de Jornalismo do Centro Universitário FAG.

Ela fala sobre situações que enfrentou quando ainda era criança, numa época em que não compreendia o que era racismo - e tampouco tinha dimensão do que significavam as piadinhas sobre sua pele e seu cabelo. Só sabia que não gostava delas.

Um levantamento feito pelo Ipec, pelo Instituto de Referência Negra Peregum e pelo Projeto SETA revela que 64% dos brasileiros acreditam que o racismo começa na escola. O ambiente, que deveria ser acolhedor e marcado pela inocência infantil, muitas vezes destrói a autoimagem de crianças negras. Elas podem até não compreender racionalmente o que está acontecendo, mas sentem - e se machucam com - as piadinhas, sobretudo, aquelas direcionadas à cor da pele e ao cabelo crespo ou cacheado.

“Eu alisei meu cabelo uma vez. Não porque queria, mas porque sofria tanto bullying que já não aguentava mais. As pessoas atiravam bolinhas de papel, tentavam cortar meu cabelo... Então, eu falei: chega!”, relatou Mariele, com a esperança de que, ao fazer a progressiva, os ataques cessassem.

Ser negro é viver uma luta cotidiana e histórica. Desde os primórdios da civilização, pessoas negras lutam por liberdade. E, mesmo após a abolição, ainda se sentem presas. Presas em uma sociedade que falha - em intelecto e em empatia. Uma sociedade herdeira de um passado opressor que, infelizmente, insiste em ser perpetuado pelas gerações futuras.

“Busca lá para mim!”


 Tainara de Oliveira, com a sua coragem, não mais silenciada e com medo de comentários | Foto: Claudia Resena
 Tainara de Oliveira, com a sua coragem, não mais silenciada e com medo de comentários | Foto: Claudia Resena

“Já fui fazer a cobertura de um evento e chegaram até mim pedindo para servir docinho - e eu estava ali, fazendo stories, cobrindo o evento... A pessoa simplesmente disse: ‘eu quero tal docinho’”, conta Tainara de Oliveira. Negra, com cabelos cacheados em tons que vão do marrom ao loiro, ela é docente do Centro Universitário FAG desde 2019 nos cursos de Comunicação. Atua também como gestora de marcas e produtora em um estúdio de fotografia. Natural de Salvador, na Bahia, vive em Cascavel (PR) desde pequena.

Tainara relata que situações como essa se repetem com frequência durante o trabalho. Pessoas a confundem com funcionárias do local e pedem que as sirva. Para ela, esse tipo de abordagem revela um preconceito estrutural: o negro ainda é, muitas vezes, automaticamente associado à posição de servidão em relação ao branco - uma ideia ultrapassada e cruel, mas infelizmente persistente.

Luis Fernando Dias Pinheiro, homem negro, com o cabelo no estilo “black”, tem 20 anos e cursa Psicologia na PUC, em Toledo. Ele relata já ter sido seguido em lojas, com sua presença sendo constantemente questionada. Também já foi confundido com funcionário em um estabelecimento onde estava apenas como cliente.

Luis afirma que essas experiências o fazem sentir como se não pertencesse a determinados espaços.

“Essas vivências deixam marcas, porque nos confrontam com preconceitos que, muitas vezes, tentamos superar internamente e socialmente”, conclui.

As marcas do racismo


Cerca de 83% dos presos injustamente por reconhecimento fotográfico no Brasil são negros. Os dados, levantados pelo Condege - entidade que reúne defensores públicos de todo o país - e também pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, mostram que os pretos, pobres e jovens são o “cardápio” preferido da injustiça. Como diria a cantora Elza Soares: “A carne mais barata do mercado é a carne negra.”

“Parece que preciso me esforçar muito mais do que os outros para alcançar o mesmo - ou quase o mesmo - reconhecimento. O racismo está presente no meu cotidiano, impondo um peso constante. Ele me faz sentir sobrecarregado em atividades acadêmicas e pessoais, simplesmente porque sinto que preciso fazer mais do que os demais para ser reconhecido e conquistar um lugar de prestígio”, relata Luis, ao descrever o sentimento de inferioridade que o persegue, mesmo dando o seu melhor. Para ele, muitas vezes, nunca é o bastante - simplesmente por ser negro.


O dia 20 de novembro


Em 2023, o dia 20 de novembro foi oficialmente reconhecido como feriado nacional no Brasil. A data, que antes era apenas comemorativa, finalmente teve seu merecido reconhecimento. Ainda que tardio, o gesto carrega enorme simbolismo para a população negra. A data marca a luta histórica de um povo que, até hoje, segue combatendo as injustiças estruturais da sociedade brasileira.

Mesmo sendo um marco conhecido e sentido por muitos, a falta de conhecimento e empatia ainda gera comentários que escancaram o racismo cotidiano.

“Por que é feriado?”, questiona uma influenciadora branca nas redes sociais.

“E o dia da consciência branca?”, brinca - de forma infeliz - uma colega de trabalho, também branca.

“Qualquer pessoa que não concorda com essa data se tornar feriado é porque não faz a mínima ideia do que nossos ancestrais passaram para podermos estar aqui. Acredito até que demorou demais para ser colocada no calendário. Enfim... conseguimos”, desabafa Luana Rodrigues Mendes da Silva, mulher preta, 25 anos, atleta profissional de futsal. Natural de Cianorte (PR), Luana vive atualmente em Cascavel.


Somos mais do que apenas uma cor, nossas vozes, nossas histórias e a nossa luta! | Foto: Claudia Resena
Somos mais do que apenas uma cor, nossas vozes, nossas histórias e a nossa luta! | Foto: Claudia Resena

Um recado para o seu eu do passado


Ao nos olharmos no espelho, vemos o reflexo do presente - mas as marcas do passado ainda estão ali, silenciosas, escondidas sob a carcaça que chamamos de corpo.

Nos fios do cabelo, nas marcas da pele, nos traços da ancestralidade... vêm também as lembranças dos comentários cruéis, das exclusões, do silêncio forçado.

Mas agora, você se vê. Enxerga que sobreviveu a tudo isso. E venceu.

Mas, e se tivesse a chance de falar com o seu eu do passado?

O que diria?

Ela foi capaz de aguentar tudo aquilo?

Diante dessa possibilidade imaginária de falar com a criança que um dia foram, quatro vozes negras se voltam ao passado para acolher, fortalecer e reescrever, com coragem, a narrativa de si:


Tainara de Oliveira:

“Não acredite no que eles falam. Você pode muito mais. Não acredite quando disserem que você é feia, porque você não é. Quem fala isso não tem moral alguma. Quando te colocarem para baixo com frases como ‘Você está aqui para me servir’, não se diminua - quem diz isso é a pessoa que está abaixo de você, que só se apoia no privilégio da branquitude dela. Tire esse privilégio dela. Diga: ‘E você é quem, para falar qualquer coisa de mim?’ Enfrente. Questione. Tire o pedestal".

Mariele dos Santos:

“Mariele, esconder quem você é só vai atrasar muita coisa na sua vida. Olha para essas pessoas - o que elas dizem e fazem é, na verdade, o que elas queriam ser. Mesmo quando você, ainda criança, escondia o seu crespo e tentava ficar na sua, as pessoas viam que você não mudava sua essência. Era inveja, sim. E depois do Ensino Médio, quem elas se tornaram? Pessoas vazias. Mesmo que, na época, aquilo te atingisse - você era uma criança frágil - você não chorava na frente de ninguém. Queria parecer forte. E foi. Você suportou tudo isso”.

Luis Fernando:

“Eu diria que me sinto orgulhoso da trajetória dele. As leituras que ele fez durante uma disciplina específica, a curiosidade em saber mais - tudo isso impactou profundamente o Luis de hoje. Graças ao Luis do passado, hoje me sinto livre. Tenho coragem de usar meu cabelo black, algo que só foi possível por causa da luta, da persistência e da disciplina dele. Nunca deixe de acreditar em você e no seu potencial. Muito obrigado por tudo!”.

Luana Rodrigues:

“Lu, você sabe que, para pessoas com o seu tom de pele, as coisas são mais difíceis. Então, siga firme. Acredite nos seus sonhos, na sua força, em tudo o que você carrega de quem veio antes. Você pode conquistar tudo o que quiser. Você é linda. Maravilhosa. Que bom que você continuou. Estou muito feliz”.

Passos de formigas


Apesar de muitos já estarem cansados de ouvir sobre racismo nos noticiários, esse ainda é um tema que será debatido por muitas gerações. Que os negros são a maioria da população brasileira é um fato - mas também são os que mais sofrem com algum tipo de preconceito. Uma ironia cruel, porém real.

Segundo pesquisa do Datafolha, 59% dos brasileiros acreditam que a maioria da população é racista. Além disso, 73% das pessoas pretas e pardas já se sentiram discriminadas por conta da cor da pele.

A busca por justiça também aumentou. De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça, em 2020 foram registrados 150 processos por racismo, injúria ou intolerância racial. Em 2023, esse número saltou para 3.915. E até agosto de 2024, já eram 4.205. As mulheres são as que mais recorrem à Justiça: representam 56% dos registros. A Bahia lidera em número de processos relacionados à questão racial, com 5 mil ações desde 2020.

Ainda são “passos de formiga”, como define Tainara ao falar sobre os avanços na representatividade social. Ou, como prefere Luana, com mais contundência: “fogo nos racistas”.



23 Comments


Tema necessário!

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Ótimo texto, Cláudia!

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Cláudia, que potência. Seu texto é um ato de escuta, de acolhimento e de denúncia - e, acima de tudo, de respeito com as histórias que você escolheu contar. Você dá espaço às vozes negras com sensibilidade, sem romantizar a dor, mas também sem reduzir a narrativa à dor. É jornalismo com consciência social, feito com afeto e responsabilidade. Parabéns pela escrita e pela coragem de contar o que muitos ainda preferem silenciar.

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Amiga, que orgulho de você! Que texto forte, sensível e necessário. Admiro demais sua trajetória, sua força e a forma como você inspira tantas pessoas!!

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A forma como você entrevista essas pessoas, resgatando memórias individuais e coletivas, revela não apenas domínio técnico, mas também um profundo compromisso ético com a representatividade e a justiça social. A proposta de dialogar com o “eu do passado” constitui uma estratégia de narrativa potente, que fortalece a identidade, promove o acolhimento e, ao mesmo tempo, mantém uma crítica contundente ao racismo estrutural. O seu trabalho contribui significativamente para a valorização das narrativas negras e reafirma a luta contra o racismo. Parabéns pela trabalho excelente Claudia!!

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Produzido pelos acadêmicos do 5º período do curso de Jornalismo do Centro Universitário FAG, na disciplina de Webjornalismo, sob orientação do professor Alcemar Araújo.

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