A dor de quem fica: sequelas de um suicídio
- Leonardo de Oliveira
- 25 de jun.
- 5 min de leitura
História sobre a dor que fica, e o silêncio de quem parte

Existem as histórias de perda: aquelas que se referem a bens materiais, às amizades que há tempos não se veem... e existe aquela que é para sempre. A perda para a morte. Mais triste do que sofrer por perder alguém é acompanhá-la de perto, com uma pessoa que você ama muito. E, comigo, aconteceu.
Este texto se resume a um desabafo. É dirigido a todas aquelas vozes que são ecoadas e não ouvidas. Serve também como um alerta: de autocuidado, de atenção, de prevenção.
Meu pai, no dia 24 de dezembro de 2021, suicidou-se. A notícia só chegou dias depois, no dia 26. Foi como se o tempo tivesse parado, como se o mundo tivesse girado para trás e me arremessado em um abismo sem fundo. Nunca esquecerei aquele dia. Foi, sem dúvida, o mais triste, angustiante e cruel.
É difícil colocar em palavras o que é perder alguém por suicídio. Porque, junto com a pessoa, morre uma parte de nós. A parte que acreditava que ainda havia tempo, que pensava que poderia ter feito algo, dito algo, evitado o pior. Mas, às vezes, não há aviso. Ou talvez nós é que não queremos enxergar. Porque ver dói. E aceitar dói ainda mais.
Meus pais estavam separados há três anos. A relação deles não era nada simples. Cresci transitando entre dois mundos diferentes, tentando equilibrar emoções conflitantes e fingindo que estava tudo bem. Meu pai, apesar de reservado, sempre esteve presente à sua maneira. Não era de grandes demonstrações de afeto, mas também nunca me deixou faltar nada.

Na noite da ceia de Natal de 2021, eu estava com minha família materna. Ríamos, comíamos, trocávamos presentes - ou pelo menos tentávamos. Dentro de mim, algo estava errado. Mandei mensagens para o meu pai: “Feliz Natal, pai. Te amo.” Nenhuma resposta. Mas ele costumava demorar, então tentei não pensar muito.
Na manhã do dia 26, o telefone tocou cedo. Uma ligação que eu nunca vou esquecer. Do outro lado, a voz embargada da minha tia. Ela mal conseguia falar. Disse apenas:
“É sobre seu pai. Venha ao apartamento dele agora. Por favor”.
O trajeto até o apartamento foi um dos mais longos da minha vida, mesmo sendo a poucos quilômetros de onde eu morava. Ao chegar, a cena parecia de um filme - ou melhor, de um pesadelo. Viaturas da polícia, ambulância, agentes do Instituto Médico Legal (IML), vizinhos com olhares de pena tentando entender o que havia acontecido, uma parte da minha família paterna aos prantos, completamente sem chão.
O cheiro do ar era estranho. Uma mistura de calor abafado que, até hoje, não consigo esquecer. O dia estava cinza, quente e, estranhamente, muito calmo. Mesmo com o burburinho, com as sirenes e os choros abafados, havia ali um silêncio absurdo, quase sobrenatural, como se o mundo estivesse em luto também.
Fiquei sabendo, naquele instante, que o meu pai estava sem vida havia mais de 48 horas. Isso me destruiu. A desinformação entre os familiares foi o primeiro indício de que algo estava errado. Para a minha avó, ele disse que viajaria comigo. Para mim, disse que passaria o Natal com minha avó. Aos amigos, simplesmente desapareceu. Todos pensaram que ele estava com alguém. A verdade é que ele estava sozinho. Completamente só. Com o corpo gelado e distante daqui. E ninguém percebeu.
As perguntas vieram como uma avalanche: por quê? Quando? Como? E, principalmente, o que eu poderia ter feito?
Os dias seguintes foram uma névoa. O velório. Os olhares de piedade. As mensagens de “meus sentimentos”. Nada parecia real. Era como se tudo estivesse acontecendo com outra pessoa. Mas não estava. Era comigo. Era o meu pai ali, dentro daquele caixão. E era a minha vida que havia sido despedaçada.
A dor do suicídio é uma dor que não tem explicação. Ela mistura tristeza com culpa, raiva com impotência. E, mais do que tudo, ela grita no silêncio. Porque as palavras ficam entaladas. O que não foi dito vira um peso nos ombros. Porque o luto, nesse caso, vem acompanhado de vergonha, medo e estigma.
SINAIS

Cristiano de Souza, psicólogo e especialista em comportamento humano, ao ser questionado sobre a depressão e as causas que levam ao suicídio, foi direto, mas humano. Disse que o suicídio é, quase sempre, o resultado de uma dor invisível que vai crescendo silenciosamente.
“Grande parte das pessoas que cometem suicídio não quer, de fato, morrer”, ele me disse. “Elas querem parar de sofrer. E, naquele momento, não conseguem ver outra saída”.
Perguntei se havia um motivo específico. Se era depressão. Se era um trauma. Ele respondeu com calma:
“A dor que leva alguém ao suicídio é multifatorial. Frustrações acumuladas, ansiedade crônica, doenças mentais, solidão, perda de sentido. Às vezes, uma sucessão de pequenos golpes diários que, ao se acumularem, se tornam insuportáveis”.
Cristiano também falou sobre a faixa etária mais vulnerável: adolescentes e adultos jovens. Mas destacou que o suicídio atinge todas as idades, gêneros, raças e classes sociais.
“O sofrimento não escolhe rosto. A dor psíquica não segue lógica. E não há uma única razão cientificamente comprovada que leve alguém a isso. É sempre um somatório, e por isso é tão difícil prever”.
Quando se perde alguém, vêm as análises - aquelas que fazem pensar: “Como eu não vi isso antes?” Meu pai estava mais calado nas últimas conversas. Falava muito sobre o passado. Demonstrava cansaço. Talvez fosse mais do que cansaço físico. Talvez fosse a alma pedindo socorro.
Fiquei pensando em quantas vezes meu pai poderia ter tentado dizer algo e eu, preso à minha rotina, à bolha de urgências triviais, não percebi. Quantas vezes ele tentou disfarçar com um sorriso, com um “está tudo bem”, e eu acreditei.
ESPERANÇA
Hoje, mais de três anos depois, eu ainda não superei, e talvez nunca supere. Mas aprendi a transformar a dor em voz. A minha história precisa ser contada, porque talvez ela ajude a salvar alguém.
O suicídio ainda é um tabu. Um sussurro desconfortável nas conversas. Mas precisamos gritar sobre isso. Precisamos falar sobre saúde mental com a mesma urgência com que falamos sobre doenças físicas. Precisamos parar de julgar e começar a escutar.
Se você, que está lendo isso, sente que está no fim da linha, fale com alguém. Ligue para o CVV (188). Procure um amigo, um parente, um terapeuta. A dor que parece eterna, na verdade, é passageira. A morte, não.
E se você conhece alguém que tem se isolado, que parece cansado da vida, que já não vê mais graça em nada, não ignore. Um “como você está, de verdade?” pode salvar uma vida. Esteja presente. Ouça sem julgamentos. Às vezes, o que salva alguém não é uma resposta, mas simplesmente a certeza de que existe alguém ali.
Meu pai foi mais uma vítima do silêncio. Da dor abafada. Da solidão invisível. E eu carrego comigo a missão de transformar essa perda em alerta. Que a história dele, e a minha, possa de alguma forma impedir que outras vidas se percam no silêncio.
👏👏
Leo, que texto profundo e emocionante. A dor de perder alguém especial é algo imaginável. As pessoas ao seu redor sentem orgulho da pessoa incrível que se tornou. Um abraço aconchegante meu bem!🤍
Leo, que texto emocionante! Meus sentimentos Temos muito orgulho da pessoa maravilhosa que você se torna diariamente. <3
que triste mas parabéns pelo texto Leo.
Léo, eu sinto muito e que forte a tua escrita. Perder alguém não é algo fácil de descrever, ainda mais quando é um alguém tão especial e próximo. Obrigada por ter aberto teu coração neste texto. Não sou a pessoa mais adequada para falar isso, mas tenho a sensação de que teu pai está te olhando muito orgulhoso!