Adolescência: um retrato do ódio masculino
- Emanuelly Aline Gomes
- 23 de jun.
- 5 min de leitura
Efeitos do acesso irrestrito de jovens e adolescentes à internet e os preconceitos disseminados nela

A minissérie britânica Adolescência, criada por Jack Thorne e Stephen Graham, foi lançada em 13 de março deste ano e movimentou as redes sociais ao abordar uma problemática crescente no meio digital: o movimento “pincel” e o cyberbullying. A história narra o desenrolar do assassinato brutal de Katie Leonard por seu colega de classe, Jamie, de apenas 13 anos, e se desenvolve a partir de uma pergunta central: por quê?
Gravada totalmente em plano-sequência - ou seja, sem cortes ou edições -, cada episódio apresenta uma perspectiva e uma consequência diferentes. O primeiro, com 65 minutos de duração, mostra o momento em que Jamie, interpretado pelo ator Owen Cooper, é preso. Assim como qualquer pessoa em uma situação inesperada como essa - em que a prisão não é prevista -, o personagem se mostra confuso e agitado. O diretor Philip Barantini transmite com maestria essa sensação ao público, sem comprometer a compreensão das cenas. Com movimentos de câmera rápidos e dinâmicos, são apresentados os principais personagens da trama: os detetives Luke Bascombe e Misha Frank; Jamie; e sua família: Manda Miller (mãe), Lisa Miller (irmã) e Eddie Miller (pai).
Logo no primeiro episódio, é possível perceber nuances de misoginia nas falas e ações de Jamie. Em todos os momentos de crise, o único a quem ele recorre é o pai - como na cena da prisão, em que é conduzido pelos detetives até a viatura, ou nos minutos tensos antes do interrogatório, e até mesmo na hora de retirar uma amostra de sangue, algo que, segundo sua mãe, ele tem pavor. A sutileza do gesto quase faz o espectador duvidar da própria percepção. Talvez ele seja apenas mais próximo do pai, buscando apoio em um momento difícil. Mas, em uma série com roteiro e produção tão minuciosamente pensados, é difícil crer que se trate apenas de um detalhe.
O segundo episódio explora o ambiente escolar de Jamie, no momento em que os detetives tentam compreender o que teria levado um garoto tão jovem a cometer um crime tão grave contra sua colega de classe. O detetive Bascombe conversa com os amigos de Jamie para tentar descobrir a origem da arma do crime, que ainda não havia sido localizada. Durante essas entrevistas, o filho do detetive, que estuda na mesma escola dos envolvidos, menciona algumas interações entre Jamie e Katie nas redes sociais e traz à tona o termo red pill (“pílula vermelha”), citado por Katie em comentários no Instagram, por meio de emojis.
O termo, originalmente associado ao filme Matrix - em que a pílula vermelha representa a escolha por enxergar a realidade e a azul, a opção de permanecer na ignorância -, foi ressignificado por fóruns incels (involuntary celibates, ou celibatários involuntários) e passou a simbolizar uma visão misógina da sociedade, culpando as mulheres pela solidão dos homens e incitando o ódio contra elas em espaços como Reddit e 4chan. Esse discurso foi amplificado por influenciadores como Andrew Tate, citado na série, que ganhou notoriedade nas redes sociais ao se autoproclamar misógino e disseminar ideias discriminatórias.
O ápice da minissérie acontece no terceiro episódio, em uma sessão entre Jamie e a psicóloga Briony Ariston, três meses após os eventos anteriores. Agora em um reformatório, aguardando julgamento, Jamie é confrontado com suas próprias ideias sobre masculinidade e a figura feminina. O episódio, com 50 minutos de duração, mantém um ritmo tenso e acalorado. Briony busca entender a relação de Jamie com os pais, amigos, colegas de escola e com Katie.
A tensão é construída com a ajuda da cenografia e das atuações impecáveis, revelando uma dinâmica de poder que se transforma ao longo do diálogo. Em determinado momento, Jamie revela o motivo do assassinato e afirma que é "melhor do que outros homens", porque, mesmo após matar Katie, ele não a tocou. Diz que poderia tê-lo feito, mas não o fez - deixando implícito que essa era, sim, sua vontade.
Ao final, quando Jamie é informado de que aquela será sua última sessão antes do julgamento, ocorre uma das cenas mais impactantes de toda a série. O garoto implora para que a psicóloga não o abandone e exige saber o que ela pensa dele, enquanto a xinga com a mesma intensidade. É neste momento que o pavor toma conta de Briony. Até então, apesar de todos os comportamentos violentos de Jamie, ela se mantinha firme e neutra - o quanto um ser humano poderia, ao menos. Quando o silêncio, enfim, domina a sala, a psicóloga chora - em um alívio pesado e doloroso.

O episódio final foca na nova dinâmica familiar dos Miller. Com o caçula ainda detido e aguardando julgamento, o assédio constante da população e a constatação de que Jamie realmente foi capaz de cometer um crime hediondo levam os pais, Eddie e Manda, a lidar com a culpa pelas ações do filho. É nesse momento que se revela uma das camadas mais profundas da trama: a violência apresentada ao longo da série é, na verdade, geracional. Ela não se manifesta apenas por meio de Jamie, mas também no comportamento explosivo de Eddie, que, em diversos momentos, expõe as marcas deixadas pelas violências sofridas por ele em sua própria infância.
A narrativa se encerra de forma simbólica. Em uma cena silenciosa e profundamente tocante, Eddie entra no quarto do filho e chora copiosamente. Ele encontra um ursinho de pelúcia, deita-o sobre o travesseiro e, ao beijar o brinquedo na testa, pede perdão a Jamie. Um gesto pequeno, mas carregado de tudo aquilo que não foi dito - e que, talvez, já não possa mais ser reparado.

A realidade por trás da ficção
A ideia de criação da minissérie Adolescência surgiu de Stephen Graham. Em entrevista ao site Tudum, da Netflix, o ator afirmou que o conceito nasceu após se assustar com o aumento no número de notícias sobre garotas assassinadas por adolescentes na Inglaterra.
“Houve um incidente em que um jovem [supostamente] esfaqueou uma menina. Fiquei chocado e pensando: ‘O que está acontecendo? O que está acontecendo na sociedade em que um menino esfaqueia uma menina até a morte?’”, comentou ele, acrescentando que outros casos semelhantes aconteceram em sequência.
O aumento dos casos de violência contra mulheres, sejam elas físicas ou psicológicas, é notável nos últimos anos. Segundo dados da organização UN Women, em 2023, cerca de 85 mil mulheres e meninas foram assassinadas — 60% desses crimes foram cometidos por um parceiro íntimo ou parente próximo. Paralelamente, cresce também o número de fóruns online que promovem o ódio ao gênero feminino, impulsionados por algoritmos de redes sociais que amplificam conteúdos de misoginia extrema.
De acordo com o jornal The Guardian, pesquisadores identificaram um aumento de quatro vezes na quantidade de conteúdo misógino sugerido pelo TikTok durante um monitoramento de apenas cinco dias. O estudo, realizado por equipes do University College London e da Universidade de Kent, aponta para um impacto direto na maneira como as novas gerações compreendem papéis de gênero e sexualidade.
Além da violência de gênero nos ambientes virtuais, a violência entre jovens e adolescentes também cresce de forma preocupante. Uma pesquisa da Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) com jovens de 30 países revelou que 1 em cada 3 já foi vítima de cyberbullying, e 1 em cada 5 afirmou ter faltado à escola devido a esse tipo de violência.
Infelizmente, esses dados tendem a aumentar. Com o acesso cada vez mais precoce e irrestrito de crianças e adolescentes à internet, o controle sobre os conteúdos consumidos se torna mais difícil, enquanto a disseminação de conteúdos nocivos é ampliada pelos próprios mecanismos das redes sociais. As discussões sobre o uso responsável da internet precisam de cada vez mais visibilidade, pois os reflexos do que ocorre no ambiente digital não param por ali - eles se estendem e se agravam, refletindo nas estatísticas de violência e discriminação em todo o mundo.
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Como sempre, a senhora arrasa, Manu!
Interessante parabéns pelo texto manu.
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