Queimadura: a ferida aberta que o burnout deixa na sociedade atual
- Yudi Kajiyama Guimarães
- 3 de jul.
- 7 min de leitura
Preocupante crescente da doença, que qualquer trabalhador está sujeito a passar em uma sociedade onde a saúde mental se esvai e o trabalho aumenta

O esgotamento profissional, ou como é mais conhecido, a síndrome de burnout, é um estado de exaustão física, emocional e mental causada pelo estresse crônico relacionado ao trabalho. O diagnóstico de burnout tem crescido exponencialmente no Brasil e no mundo, de acordo com uma pesquisa da multinacional, Willis Towers Watson (WTW), 23% dos trabalhadores brasileiros relatam sofrer ou já terem sofrido sintomas do esgotamento profissional. Já nos Estados Unidos,os números são ainda mais assustadores, 66% dos trabalhadores sofrem com algum nível de burnout e o índice é maior entre os jovens (entre 18 a 34 anos), chegando a 80%, aponta estudo da Moodle/Censuwide, realizado em fevereiro de 2025.
A professora do Centro Universitário Fundação Assis Gurgacz , Julliane Brita, conta que recebeu o diagnóstico em meados de 2019. “Trabalhar sempre tornou a minha vida completa, então sempre gostei muito do que eu fazia e sempre trabalhei bastante. Porém, de repente, eu passei a perder o gosto pelo trabalho. Após essa percepção, passei pelo processo de identificar que algo estava errado, que para mim é o mais importante a se fazer, pois não é de um dia para o outro que isso ocorre”, comenta.
“Você se doa demais, você preenche todos os espaços da sua vida com o trabalho, e aí de repente você passa a notar que não tem mais espaço para você mesmo. Quando notei isso, que antes o trabalho ocupava esse lugar de muito prazer, de muita satisfação, e de repente passou a ocupar um lugar de insatisfação completa, um lugar de frustração que eu não havia experimentado ainda, entendi que estava passando por um processo de burnout”, dissertou Julliane.
Ela conta como foi enfrentar a doença. “É como todos os demais transtornos mentais, tem muito sofrimento e também é uma coisa silenciosa. Então, muitas vezes, de fora não parece, não é uma doença que necessariamente vai se expressar fisicamente. Seu dia é um sofrimento, imagine o peso que tem que tem isso, é basicamente você estar em sofrimento, e daí ele não chega só durante o trabalho, o fato de você ter que pensar que você vai ter isso o dia inteiro já gera um sofrimento” comentou.
A professora universitária recebeu alta médica e conta seu “segredo”. “Eu busquei tratamento, tentei reduzir um pouco a minha a minha carga de trabalho e estou nesse processo de não fazer com que o trabalho seja o ponto central da minha vida. Valorizar as outras coisas, entender, que apesar de ocupar uma parte muito significativa e muito grande na nossa vida, o trabalho não é tudo. Nós não somos o nosso trabalho, nós não somos o desempenho que a gente tem no trabalho, então nós estamos numa sociedade que valoriza aquilo que você faz para ganhar dinheiro e nós somos o nosso potencial de ganhar dinheiro nessa sociedade e é isso que a gente precisa descontentar”, concluiu Julliane Brita.
Ela aconselha aqueles que receberam o mesmo diagnóstico: . “Eu acho que o principal ponto de reflexão é algo que todos nós podemos pensar enquanto sociedade, que é reposicionar o trabalho, não atrelar a nossa identidade única e exclusivamente ao trabalho. Pois se a pessoa é demitida, além de você ter a perda da renda, por exemplo, você tem uma vergonha, uma culpa justamente por esse lugar que o trabalho ocupa”, comentou.
A queimadura no campo da mente

A psicóloga Kamila Cristini Santana, especialista em atender pacientes com ansiedade e sobrecargas emocionais,vivencia diretamente a realidade de pessoas com diversas síndromes. O burnout pode ser entendido como um cansaço extremo, tanto físico quanto emocional e mental, que acontece principalmente por causa do trabalho. A pessoa chega num ponto em que se sente esgotada, sem energia, sem motivação e até com dificuldade de realizar tarefas simples. Para identificar não é tão simples, porém podem-se observar fatores como o cansaço constante, perda de interesse pelas tarefas, irritabilidade, sensação de que nunca é suficiente, dificuldade para descansar, insônia, dores no corpo, e até baixa autoestima. Muitas vezes, a pessoa percebe que não está bem porque sente que está se arrastando para cumprir obrigações e não sente prazer em nada”, conceituou a psicóloga.
Em um mundo onde a pressão psicológica está cada vez mais normalizada e constante, além da insistência em sistemas de trabalho como a escala 6x1 que exige muito do trabalhador, tanto física quanto psicologicamente, existem algumas razões pela qual o burnout cresce cada dia mais no mundo moderno.
“O diagnóstico está mais comum porque o ritmo de vida e de trabalho está cada vez mais acelerado. As pessoas são cobradas para produzir o tempo todo, responder rápido, dar conta de tudo. Hoje, felizmente, também se fala mais sobre saúde mental. Antes, quem passava por isso era visto como fraco ou preguiçoso, o que dificultava o diagnóstico e o tratamento”, explicou a psicóloga.
Com o passar dos anos o preconceito quanto aos problemas mentais foi se esvaindo, com isso, diversas pessoas alegam passar por problemas. Kamila conta como diferenciar problemas como a depressão, de um burnout. “Apesar de terem sintomas parecidos, o burnout está diretamente ligado ao trabalho ou a situações de cobrança constante. A pessoa pode estar bem em outras áreas da vida, mas exausta por causa da profissão. Já a depressão e a ansiedade podem aparecer em vários contextos, não só no ambiente profissional”, explicou.
“Qualquer pessoa pode passar por um burnout, até mesmo quem ama o que faz. O problema não é gostar do trabalho, mas não ter limites. Quando a pessoa se dedica demais, não descansa e sente muita pressão, isso pode acontecer com qualquer um, mesmo que nunca tenha tido outro problema de saúde mental antes”, afirmou.
Tendo isso em vista, a procura por ajuda em momentos sensíveis mentalmente se faz necessária, a fim de buscar um apoio. Kamila ensinou como faz para ajudar pacientes que passam pelo esgotamento profissional. “Primeiro, a gente conversa bastante para entender como está a rotina, as cobranças e o impacto disso na vida da pessoa. Depois, buscamos construir formas de reorganizar o cotidiano, criando limites e espaços de descanso. O tratamento envolve acolhimento, escuta, construção de estratégias e, em alguns casos, é importante também o acompanhamento com psiquiatra”, comentou.
“Existe um tratamento para o burnout, e com o tempo, é possível que a pessoa se recupere e volte a se sentir bem. Mas é preciso cuidar do psicológico, mudar hábitos, repensar o estilo de vida e, em alguns casos, até mudar de ambiente de trabalho, se for um lugar muito tóxico. É importante manter uma rotina com pausas, momentos de descanso e lazer. Aprender a dizer “não” para exageros e respeitar seus próprios limites. Fazer terapia ajuda muito, porque a pessoa vai se conhecendo melhor e pode perceber os sinais antes que a situação piore”, orientou a profissional.
A psicóloga ainda aconselha: “você que não precisa dar conta de tudo. Não é vergonha pedir ajuda, descansar ou dizer que está cansado. O trabalho é só uma parte da vida e não vale a pena se perder por ele”, concluiu
A queimadura para quem emprega
Isabella Gonçalves, estudante de psicologia, atua no setor de recursos humanos da Brasil Foods (BRF) e lida constantemente com casos de burnout e ansiedade. “Na BRF, a gente tem visto uma mudança significativa nesse olhar quanto aos transtornos mentais. O burnout deixou de ser visto como uma "fraqueza" do colaborador para ser entendido como uma questão que envolve o ambiente de trabalho como um todo. Na empresa temos que nos posicionar de forma mais institucional, reconhecendo a importância de cuidar da saúde mental como parte da sua responsabilidade social e corporativa. Ainda há muito a evoluir, claro, mas já não é mais um tabu como era antes”, comentou.
Muitas empresas não possuem políticas ou indicadores internos para monitorar os sinais de esgotamento dos funcionários, assim, elas não percebem quando o trabalhador chega ao seu limite. “Realmente se faz muito importante, por exemplo, aqui na empresa existem iniciativas voltadas para o bem-estar emocional, temos o programa “Ser BRF”, que é voltado justamente ao cuidado com a saúde física e emocional dos colaboradores. Há também canais de escuta e pesquisas internas que buscam captar o clima organizacional. Esses instrumentos ajudam a mapear possíveis sinais de esgotamento. Não é uma ciência exata, mas há um esforço contínuo para melhorar esses indicadores”, comentou Isabella.
Mesmo empresas tendo ações voltadas para a saúde do trabalhador, o equilíbrio entre a vida pessoal, trabalho e lazer pode não existir, o que pode ser influenciado pelas ações da empresa. “De modo geral, as empresas têm que promover mais diálogos sobre equilíbrio e qualidade de vida. Existem áreas que lidam com prazos muito apertados e, nesses casos, ainda se sente uma pressão, o que pode piorar o quadro do trabalhador. Porém, também vemos líderes mais conscientes, incentivando pausas e respeitando os horários de trabalho. Então, depende muito da cultura da equipe e da liderança direta”, salientou.
“Muita coisa mudou na visão dos recursos humanos. A pandemia foi um divisor de águas nesse assunto. Antes, falava-se muito em saúde física e segurança, mas a saúde mental era deixada de lado. Depois de tudo o que passamos, o RH passou a enxergar esse tema com mais seriedade. Hoje há mais escuta, mais empatia e mais ações práticas. O RH tem sido cada vez mais estratégico nesse cuidado com as pessoas”, refletiu.
O processo de acolhimento de um funcionário com burnout normalmente se inicia no INSS. “Há um processo de acolhimento que geralmente começa com o afastamento pelo INSS, quando necessário, e o RH entra como apoio para garantir o retorno de forma gradual e segura. O colaborador pode contar com acompanhamento do Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT) e do programa de apoio psicológico. Ainda não diria que há um "protocolo claro" e padronizado para todos os casos, mas existe um cuidado crescente nesse sentido”, contou a estudante de psicologia.
“Eu acredito que estamos aprendendo. Algumas empresas, como a BRF, têm feito movimentos importantes, mas, de forma geral, o Brasil ainda está engatinhando. Falta uma cultura mais sólida de prevenção e acolhimento. Muitas vezes só se fala sobre isso quando o problema já virou uma crise. Mas vejo esperança, porque esse tema está ganhando espaço e sendo tratado com mais seriedade”, concluiu Isabella sobre a preparação das empresas brasileiras quanto ao burnout.
O burnout transcendeu o status de um simples diagnóstico para se tornar um espelho da sociedade atual, que frequentemente supervaloriza a produtividade incessante em detrimento do bem-estar humano. Essa exaustão coletiva é um grito silencioso, que, muitas vezes, fica escondido e guardado dentro de si. A sociedade atual com a escala 6x1, com a supervalorização da meritocracia e do dinheiro, estão inflando os problemas mentais e reduzindo as preocupações quanto aos resultados do esforço extremo.
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