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Quando a palavra vira semente: as rimas que germinam o futuro

Cultura das batalhas de rima em Cascavel floresce como forma de resistência, acolhimento e sonho, e em cada esquina, as rodas brotam como resistência


A Batalha do Marco Zero (MZ) ocorre às quartas-feiras às 19h na praça Getúlio Vargas e reúne diversos MCs e artistas da cidade | Foto: Instagram da Batalha da MZ (@batalhadamz)
A Batalha do Marco Zero (MZ) ocorre às quartas-feiras às 19h na praça Getúlio Vargas e reúne diversos MCs e artistas da cidade | Foto: Instagram da Batalha da MZ (@batalhadamz)

A escuridão da noite carrega consigo, nas praças e periferias de Cascavel, mais do que uma roda de batalhas de rimas. Traz expressão, cultura e gritos que denunciam, que representam, que fazem jorrar de dentro tudo aquilo que causa angústia ou felicidade.

A música é, para essa comunidade, uma forma de expressão, um brado que os obriga a serem ouvidos. Não só isso, mas também, quando estão com o microfone na mão e as estrofes na ponta da língua, os MCs das batalhas fazem entretenimento, inspiram crianças e adolescentes a expressarem suas mágoas e frustrações e, apesar da discriminação, dispersam a cultura não só pela periferia, mas também por todas as classes sociais, que a cada alvorada, abraçam mais a cultura do rap.

Não à toa, a prática tem se expandido por todo o Brasil. No Distrito Federal acontecem hoje mais de 20 batalhas semanais, contra apenas três no início dos anos 2010. Em São Gonçalo (RJ), o número de rodas passou de 64 em 2017 para 98. Eventos como a Batalha da Aldeia, em São Paulo, reúnem cerca de 30 MCs, com público de cinco mil pessoas, premiação de R$100 000, e mais de 4,6 milhões de inscritos no YouTube. Vista como um símbolo de representatividade, as batalhas de rima também abarcam a diversidade. A Batalha das Gurias, em Brasília, é exclusivamente feminina, e ocorre mensalmente, reunindo entre 16 e 32 MCs.

Como soldados das estrofes e versos, armados de microfones e munidos de caixas de som, os MCs das batalhas de rima compõem suas melodias como exímios improvisadores, somando frases e palavras como um malabarista com pinos de boliche, em um movimento que parece ser por acaso, mas é milimetricamente pensado em uma fração de segundos, e que expressa tudo aquilo que o cantor idealiza. É o famoso freestyle. Um exemplo de dedicação e esmero pela arte das rimas é o do rapper Eminem. Quando era mais jovem, ele lia o dicionário, a fim de aprender mais palavras para ornamentá-las em uma orquestra com identidade própria.

“Eu estudava o dicionário. Eu lia o dicionário para construir meu vocabulário. Eu simplesmente adorava palavras”, disse Eminem no programa 60 Minutes, da CBS.

Com o microfone na mão, o grito da rima fala mais alto que as balas e a violência, e a dor da derrota ou da vitória é abafada pelas manifestações e palmas de apoio e incentivo, mesmo para aqueles mais reservados. Isaias Régis, codinome Reizz, é o organizador da batalha da MZ, em Cascavel (PR), e explora a história por trás da cultura das rimas e os formatos dos eventos:

“O pessoal iniciou as batalhas como roda de freestyle, nas praças, para curtir e tirar um rolê. A partir disso eles conseguiam se libertar e fazer sua arte, e começaram a criar batalhas aqui em Cascavel. Hoje em dia, nós temos as regras de não quebrar os direitos humanos e sem nenhum tipo de preconceito. Fazemos ou o modo tradicional, que são 45 segundos pra cada MC atacar e responder, ou o bate e volta, no qual um MC ataca e o outro responde, como se fosse um debate”.

Pedro Branco Vieira, cujo nome artístico é PB Breck, começou a rimar vendo vídeos na internet. Desde a tenra idade, o artista enxerga nas rimas uma forma de representar o falecido amigo Daniel, com quem aprendeu a rimar, aos oito anos de idade, quando o som das batidas na bola de futebol e os barulhos da vizinhança eram o beat perfeito para uma escola de rimas, composta pelos lances e acontecimentos das brincadeiras. Desde então, a paixão pelas rimas tomou o coração do jovem e nunca mais se deixou silenciar. “A sensação de estar rimando no meio da roda traz um certo medo, uma insegurança, ao mesmo tempo em que se recebe uma energia positiva do público, que demonstra que você está sendo ouvido. Hoje em dia as pessoas não querem parar para escutar o outro, é muita correria, tudo muito rápido, então quando alguém parar pra te escutar e você consegue falar um sentimento que sai de dentro, é o mais reconfortante, uma das melhores sensações que tem”, relata PB.

A receita das rimas é uma inconstância  Às vezes uma boa dose de improviso, de vez em quando uma pitada de desabafo, acolá a expressão de uma conquista, um motivo de felicidade, ou a adição da mais pura essência dos confrontos: a irreverência, o deboche e a ofensiva ao MC adversário. Qualquer que seja a variável, o resultado é uma fresca e quentinha representação da realidade de quem rima. “As batalhas influenciaram na minha forma de agir, porque você não vai rimar uma coisa na frente de todo mundo e ser uma pessoa diferente do que você fala que é na rua. Um dos principais objetivos do hip hop é esse, influenciar a mudança, a virada de chave, o rap salva muitas vidas todos os dias”, conta PB. Já para Isaias, o sabor da receita é a superação da timidez e a mudança no jeito de ser, no que tange ao aprimoramento da locução e a interação com o público: “Nós da cultura hip hop adoramos abraçar o público de fora ou quem tenta pela primeira vez. Então quando eu vejo um jovem tímido ou na primeira vez rimando, eu sinto uma nostalgia da minha primeira vez. O melhor jeito de perder a vergonha do público é falando com eles. O hip hop nos salva, você consegue ver as coisas com outros olhos, outras percepções. É como se fosse algo libertador”.

Nas rodas de rima, os versos se cruzam como fios invisíveis, e é no improviso que se costuram amizades que resistem como bordado em pano grosso. Isaias deixa claro como as rimas formaram firmes tecidos em sua vida que não se desfazem tão facilmente: “A rima me trouxe novas conexões, amigos e pessoas com os mesmos objetivos. Teve uma vez, todos os MCs de Cascavel se juntaram numa van e partimos pra Guaíra em um evento. Um companheiro nosso ganhou, e antes da final a gente tinha todos os MCs de Cascavel reunidos em volta do palco com um compromisso apenas: curtir o hip hop e ver a vitória de um companheiro nosso, pra mim isso foi mágico. Ver como o hip hop consegue unir as pessoas num objetivo só, o mesmo sonho, pra mim isso é gratificante e muito especial”.


Após os embates, é comum entre os MCs um cumprimento e até um abraço, como forma de respeito | Foto: Instagram da Batalha da MZ (@batalhadamz)
Após os embates, é comum entre os MCs um cumprimento e até um abraço, como forma de respeito | Foto: Instagram da Batalha da MZ (@batalhadamz)

As vielas estreitas das periferias, que dão à luz às batalhas de rima, como a foz de um rio que nasce entre regiões montanhosas e emaranhadas, eventualmente na curva certa, podem se tornar verdadeiras avenidas para artistas que sonham em viver da música, e desaguar no oceano da fama. Sobre os afluentes da rima em Cascavel, Isaias fala: “Talentos e prodígios têm em alta e grande demanda. Em Cascavel é difícil por não ser do eixo. Temos grandes nomes aqui também, a mamacita por exemplo, conhecida no Brasil inteiro”. Almejando desde sempre desaguar no oceano da vida da música, PB alega:

“Sempre foi um sonho, mas os valores eram muito altos. A partir disso comecei gravando com uma lapelinha e uma meia em volta, fiz umas apresentações com essas músicas gravadas e no final das contas montamos um estúdio. Hoje eu tenho minha própria gravadora, onde eu gravo não só as minhas músicas mas de vários artistas aqui da cidade, que vem até mim com esse sonho de gravar”.

Contudo, não são apenas o dinheiro e a fama que figuram entre o oceano de possibilidades que as batalhas de rimas abrem. No caminho, há rios de sentimentos, lagos de confrontos contra outros MCs, córregos de denúncias e riachos de aprendizados. 

“Rimar tem um fundo de sentimento, alguma mensagem que você quer passar e algo que você já viveu. Teve uma batalha que foi uma semana após minha avó ter falecido, e foi o dia mais difícil para rimar. Eu tive que me forçar muito e consegui ganhar a batalha no final, foi muito emocionante, consegui mandar um freestyle falando sobre tudo o que tava acontecendo. Isso é mais difícil do que enfrentar qualquer pessoa, enfrentar a gente mesmo, quando a gente não tá num dia tão bom”, desabafa Pedro.

Na comunidade, o conceito de ganhar ou perder se esvai em meio às palmas e gritos, mesmo para aqueles que são eliminados. As rodas de batalha, como um indivíduo único em sua excentricidade, tem sua alma formada pelo público, que, através do barulho, decide quem cai perante o adversário e quem segue rimando. “Ganhar ou perder é a menor das preocupações numa batalha. Às vezes você perde na primeira fase, mas nas 4 rimas que você teve, conseguiu mandar uma parada muito pura que vai tocar quem tava ali. Então valeu muito mais a pena do que chegar na final sem falar nada”, esclarece PB.

A comunidade das batalhas, como uma árvore frondosa, incumbida de toda sua representatividade, também faz questão de cultivar as sementes que germinarão em plantas cheias de frutos. “Nós da MZ, em colaboração com a batalha do salão, influenciamos o projeto Divertida Rima, no qual vamos na casa de cultura da zona norte e em colégios espalhar o hip hop e conectá-los a incentivos culturais. Às vezes, o Cascavel Dancers também nos ajuda, o pessoal do break… Sempre temos a função de incentivar os menores a um caminho cultural bom”, destaca Isaias.

Seja qual for o afluente, a receita, a costura ou a planta, é inegável que as rimas salvam. Salvam do crime, da violência, da revolta, ou mesmo da rotina, da timidez, do luto. As batalhas representam uma trilha iluminada por vagalumes que guiam, no meio de uma mata densa e escura, que muitas vezes oprime, denigre e marginaliza. As rodas são a representação, a inclusão e o significado de uma casa que abraça e acolhe quem precisa, também, ser salvo.


1 Comment


cdosouza
Jul 04

Sensacional a história que você trouxe aqui, que tenhamos mais visibilidade para as batalhas de rima, viva o hip hop

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Produzido pelos acadêmicos do 5º período do curso de Jornalismo do Centro Universitário FAG, na disciplina de Webjornalismo, sob orientação do professor Alcemar Araújo.

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