Começar de novo, vai valer a pena?
- Evelyn Veit
- 12 de mai.
- 3 min de leitura
Uma história sobre rupturas que salvam, recomeços imperfeitos e a paz depois do caos

Por volta de meia-noite, em uma quinta-feira qualquer, Rita (nome fictício) atravessou a porta de casa - não como quem sai, mas como quem se liberta. Levava nas costas apenas uma mochila. Dentro dela, o básico: uma muda de roupa, documentos, um pouco de dinheiro e toda a coragem que coube entre os zíperes. Era pouco para quem fugia do mundo que chamavam de lar. Mas era tudo que ela precisava para começar.
A decisão veio como um estalo, depois de anos em que os gritos e os silêncios se tornaram parte do café da manhã. Algo dentro dela rompeu, como se uma corda esticada há tempo demais finalmente tivesse se arrebentado. Rita não suportava mais um dia, uma hora, um minuto sequer. Começar de novo, por mais incerto que fosse, era a única saída.
A escolha não foi fácil. Nem simples. Muito menos romântica. Fugir de casa não significava reencontrar a paz logo na esquina. O primeiro destino foi o sofá de um amigo, onde o cheiro do ambiente era estranho e o silêncio, incômodo. Não pela ausência de barulho, mas pela presença ensurdecedora de dúvidas. Quem ela seria agora? Para onde iria? E como, afinal, se vive longe de tudo aquilo que, mesmo doendo, era familiar?
A resposta veio devagar, em gotas. Num banho quente que não era interrompido por socos na porta. No prazer de dormir sem medo. Na ausência de sapatos batendo no chão como prenúncio de fúria. Nas manhãs em que acordava e sentia - sem saber explicar - que estava viva de verdade.
Mas viver não é simples. E recomeçar, menos ainda. A culpa, essa herança silenciosa de quem se vai, também foi na bagagem. Rita pensava na mãe. Pensava se tinha sido egoísta ao deixá-la. Pensava se o amor não deveria ter insistido mais um pouco. Mas havia uma certeza inabalável que a acalmava no meio da noite: ela não poderia ter ficado.
A dor, paradoxalmente, virou combustível. Sua fé, que antes sussurrava, agora gritava. Em um desses momentos de cansaço profundo, de chão sumindo sob os pés, ouviu - com o coração - um chamado. Era Exu, não com capa ou tridente, mas com firmeza e ternura: "você não vai voltar para aquela casa. Você não vai se afogar junto. Levante-se e vá".
E Rita foi. Não com pressa, mas com propósito.
Hoje, já com seu canto para chamar de lar, ainda lida com os espinhos que sobraram do passado. As cicatrizes, embora feias, não são mais feridas abertas. São mapas da travessia. Nos dias em que o medo ameaça voltar, ela se recorda: liberdade não é ausência de dor, é presença de escolha.
A paz, essa palavra tão banalizada nas redes sociais e tão rara na vida real, virou sua melhor conquista. Está nas pequenas coisas: na chave que ela gira todas as noites sabendo que ninguém vai gritar do outro lado da porta. No quarto decorado com o que ela gosta - e não com o que alguém impôs. E, sobretudo, na ausência: da violência, do medo, da opressão.
Rita não quer ser símbolo, nem exemplo. A sua história não cabe em cartilhas. Mas há algo nela que ecoa, como um refrão antigo. A música que embala seus dias poderia ser aquela de Ivan Lins:
“Começar de novo, e contar comigo, vai valer a pena...”.
Porque valeu. E ainda vale. Cada passo fora do abismo. Cada noite de incerteza. Cada lágrima escondida no travesseiro alheio. Hoje, Rita sabe: é sempre tempo de começar de novo. Mesmo que doa. Mesmo que assuste. Mesmo que, no começo, pareça impossível.
Porque, no fim, o impossível é só o possível que a gente ainda não teve coragem de viver.
Muito bom aprender com pessoas que talvez não pudéssemos conhecer de outra forma que não pela escrita.
Evelyn, que texto corajoso, sensível e profundamente necessário. Sua escrita abraça, denuncia e cura - tudo ao mesmo tempo. A construção da narrativa de Rita é feita com tanto respeito e humanidade que torna impossível não se comover. Você tem domínio do ritmo, da metáfora e, sobretudo, da escuta. Obrigado por dar voz a tantas mulheres silenciadas, e por mostrar que recomeçar é, sim, um ato de bravura. Que sua escrita siga sendo esse espaço de respiro, resistência e libertação. Parabéns!
Que texto lindo, parabéns!!!
Que texto incrível. Parabéns!!
Que texto lindo amiga! Parabéns.