Identidade sem dignidade: a invisibilidade das pessoas trans no mercado de trabalho
- Leonardo Pelegrini Moura
- 17 de jun.
- 6 min de leitura
Atualizado: 20 de jun.
Marginalizadas, muitas pessoas trans vivem entre a negação da identidade e a ausência de oportunidades, em um país onde ser quem se é custa vidas

No Brasil, viver com autenticidade pode significar abrir mão de direitos básicos - como o de trabalhar, estudar, existir com dignidade. Para pessoas trans, essa verdade se impõe com violência silenciosa e diária. Embora o discurso da inclusão tenha ganhado espaço, a realidade segue atravessada por portas que se fecham, olhares que julgam e oportunidades que nunca chegam. O mercado de trabalho, que deveria ser sinônimo de igualdade, ainda se revela um dos ambientes mais hostis para quem ousa romper padrões de gênero impostos.
Entre portas fechadas e resistências diárias, apenas 4% das pessoas trans e travestis estão empregadas no mercado de trabalho formal no Brasil. Em 2023, houve uma queda de 57% na oferta de empregos para profissionais trans no Brasil, segundo pesquisa realizada pelo Estadão. A situação se agrava quando são mulheres trans, já que 13,9% delas têm emprego formal no estado de São Paulo, enquanto, entre os homens trans, a porcentagem sobe para 59,4%, conforme pesquisa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
No entanto, as dificuldades não se limitam à espera de uma oportunidade profissional. Pessoas trans enfrentam a discriminação durante os processos seletivos, especialmente quando não se enquadram nos padrões de “passabilidade” de gênero - a capacidade de ser percebido socialmente conforme o gênero com o qual se identifica. Se superados esses desafios, após a contratação, no ambiente de trabalho, muitos ainda enfrentam desrespeito ao nome social, exclusão e falta de reconhecimento de sua identidade de gênero. Ademais, a ausência de programas de conscientização e inclusão nas empresas contribui para a exclusão contínua de profissionais trans.
Gabriela (nome fictício), mulher trans de 44 anos, trabalha como auxiliar de alimentação em um hotel, em Cascavel - PR. Ela confessa que foi a melhor oportunidade de trabalho que já teve, em termos de salário, acolhimento e realização profissional. “Tive um bom entrosamento com os colegas lá, me senti muito acolhida, querida e amada. De todas as oportunidades de emprego que tive, essa foi a que eu mais me identifiquei”.
Contudo, a realidade no mercado de trabalho para a comunidade nem sempre é assim. Gabriela confessa já ter sentido muita dificuldade para conseguir emprego. Com a regulamentação dos documentos, a primeira experiência da mulher foi em uma rede de restaurantes fast food, no centro de Cascavel, em 2019. Antes da oportunidade, Gabriela trabalhava como empregada doméstica. “Todo trabalho você vai encontrar dificuldades. É uma questão de adaptação. Meus empregos anteriores foram extremamente difíceis, lidar com as pessoas e com os colegas de trabalho não é fácil, principalmente no começo”.
A situação não é muito diferente para a mulher trans Duda Jankauskas, bióloga e pedagoga que, apesar das duas graduações e uma pós, estudante de ciências políticas e medicina veterinária, sente que é mais avaliada e julgada por ser quem é do que pelo desempenho profissional.
“As pessoas, em entrevistas, analisavam quem sou, não o meu profissional. O respeito que tenho é com base em muita provação da minha capacidade profissional, e quando acontece, mesmo assim sou questionada pelo fato de me sobressair aos demais. Sempre sou questionada por cada passo que dou”, desabafa.
A psicóloga Fernanda Burkoski afirma que a rejeição e discriminação no ambiente de trabalho podem ter um impacto significativo na saúde mental das pessoas trans.
“O preconceito pode levar a uma série de problemas, como altos níveis de estresse e ansiedade, depressão e até mesmo pensamentos suicidas. A falta de aceitação e a experiência de discriminação podem dificultar a formação de relacionamentos e o sentimento de pertencimento, o que pode levar a um isolamento social”.
Gabriela revela nunca ter sofrido nenhuma discriminação ou preconceito por parte de gerentes e chefes, porém com os colegas de trabalho a situação é diferente.
“Sempre tem alguém que queira me recriminar, me excluir, me difamar ou me hostilizar. Antes da troca dos documentos eu sentia que era mais difícil. Parece que com a regulamentação facilita”.
Gabriela está em posse dos documentos regularizados desde 2018 e admite que isso trouxe mais naturalidade e facilidade.
Os estigmas associados às pessoas trans ainda estão enraizados em uma sociedade que não aceita nada daquilo que está fora dos padrões impostos. As consequências para a comunidade são inúmeras, como reflete Gabriela. “No meu ponto de vista, mesmo nos dias de hoje, eu não acho que as pessoas trans tenham algum tipo de visibilidade. Vendo o grau de dificuldade que seria para um homem, mulher, e até mesmo um homem gay, tudo para nós é muito mais difícil. É muito difícil você ver uma mulher trans no mercado de trabalho que não seja no salão de beleza ou que não esteja nas ruas se prostituindo. As pessoas trans sempre foram associadas ao que não presta”.
O fato de pessoas trans, sobretudo mulheres, recorrerem à prostituição pela falta de espaço, acolhimento e aceitação no mercado de trabalho é o resultado de inúmeros fatores: exclusão social, transfobia estrutural e vulnerabilidade socioeconômica. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra), cerca de 90% das travestis e mulheres transexuais no Brasil têm a prostituição como principal meio de sobrevivência.
Duda, que também é ativista humanitária, acredita que as empresas em sua grande maioria podem até adotar políticas de diversidade, porém internamente as dificuldades nas relações entre funcionários são difíceis.
“Pelo simples fato de a cisheteronormatividade (norma que impõe ser cis e heterossexual como única forma legítima de expressão de gênero e orientação sexual) não achar que devemos ocupar esses espaços e sim apenas estar servindo como fetiches para homens. Ainda lutamos muito para sermos reconhecidas, mesmo que já temos políticas que nos defendam. Primeiro que, enquanto as pessoas não se afastarem de preconceitos, não adianta existir políticas adotadas. Precisamos da execução e da garantia dessas políticas”, destaca.
A psicóloga Fernanda ainda ressalta que o fortalecimento da autoestima e identidade das pessoas trans está muito relacionado com a aceitação e as referências que elas têm durante a vida. Ao verem suas histórias e experiências compartilhadas e respeitadas, pessoas transgênero são validadas e sentem-se parte integrante da sociedade. Isso contribui para a construção de uma autoimagem positiva e para a redução dos impactos negativos causados pelo preconceito. “A autoestima e a autoaceitação são fundamentais para o bem-estar das pessoas trans, que enfrentam desafios específicos em um contexto social que nem sempre é acolhedor. A autoaceitação e uma autoestima positiva são importantes para a saúde mental, a construção da identidade de gênero e a resistência contra a discriminação”, afirma a profissional.
Apesar de tamanhos desafios e barreiras sociais que enfrentou na vida apenas por ser quem é, Gabriela resiste. “A gente tem sim que acreditar, perseverar. Eu passei uma vida inteira me deprimindo, me anulei como ser humano, achando que nada daria certo pra mim, que ‘tava’ tudo perdido, que as coisas não iam se alinhar, mas Deus tem me mostrado que não é nada daquilo que eu achava que fosse. Sempre vale a pena para quem tem fé e força de vontade, para quem quer virar o jogo. Nada é fácil para pessoas como nós, infelizmente temos o peso do preconceito. É muito mais difícil do que para as outras pessoas, mas não é impossível”.
Duda também alimenta seus sonhos profissionais, e não se permite abalar pela opinião alheia.
“Quero ter minha clínica veterinária e poder ser frente política na luta por vidas, minorias e corpos oprimidos. Somos resistência, ser travesti é ser ancestralidade, é lutar para que a transgeneridade possa andar. Nossas ancestrais morreram para estarmos aqui, então, hoje, lutamos para que possamos ocupar todos os espaços. Desistir não é uma opção!”.
Apesar de contrariar as estatísticas, uma vez que, segundo a Antra, 0,02% das pessoas trans tiveram acesso ao ensino superior, Gabriela sonha em fazer a primeira graduação no curso de Nutrição e superar tantos estigmas, preconceitos e desafios que as pessoas trans enfrentam não só no mercado de trabalho, mas também em todos os âmbitos sociais. Duda também é uma prova de que não se pode deixar abalar pelas estatísticas: a mulher já tem duas graduações, uma pós, e está estudando Ciências Políticas e Medicina Veterinária, para completar quatro formações no currículo. Apesar das dificuldades, ambas as mulheres e toda a comunidade batalham diariamente para quebrar preceitos tão enraizados em um corpo social que denigre e marginaliza todo aquele que não se encaixa em seus padrões pré-estabelecidos.
Enquanto pessoas trans forem empurradas para a marginalidade, para o silêncio ou para o apagamento, estaremos todos compactuando com uma injustiça histórica. Gabriela e Duda são provas de que sonhos não se apagam diante do preconceito - eles se transformam em resistência. Cada diploma conquistado, cada emprego alcançado, cada espaço ocupado é mais do que uma vitória pessoal: é um ato político. Porque garantir trabalho, respeito e acolhimento não é favor - é reparar uma dívida com quem insiste em viver, mesmo quando o mundo insiste em negar.
Mandou bem Leo, parabéns pelo texto meu amigo
👏👏👏
Leo, que tema incrível e necessário! Parabéns por essa reportagem. Você conseguiu dar voz à pessoas que, por vezes, são silenciadas. E, mesmo diante de um assunto tão forte, você conseguiu escrever com sensibilidade. Trabalho incrível!