Gabriel nasceu duas vezes
- João Roso
- 2 de jul.
- 3 min de leitura
Gabriel nasceu em janeiro de 2005, mas essa foi só a primeira vez.
A segunda vinda ao mundo foi mais silenciosa, sem maternidade, sem visitas, sem balão rosa pendurado na porta. Foi um processo lento e às vezes doloroso. Porque nascer como menino dentro de um corpo que o mundo insiste em ver como feminino não é só um desafio biológico. É uma luta social e emocional.
Na infância, Gabriel nunca gostou de bonecas. Era dos carrinhos, das roupas largas, dos jogos no computador. Se vestia com o que lhe davam, mas não com o que queria. O espelho, por muito tempo, foi o lugar mais estranho da casa.

O que ele sentia não tinha um nome claro. E, mesmo que tivesse, não era algo que se sentisse à vontade para dizer em voz alta. Então primeiro se assumiu como alguém que gostava de meninas. Depois, como não-binário. Até que, com mais maturidade e menos medo, entendeu: era um homem transgênero.
Aos 15 anos, começou a “plantar a sementinha”, como ele mesmo define. Passou a vestir roupas masculinas, fazia comentários sutis em casa, deixava pistas, tudo para acostumar a família, sobretudo a mãe.
“Eu falava um pouquinho por dia. Quase todo dia. Até ela entender”.
Gabriel estudava no Instituto Federal do Paraná durante a pandemia. Foi preso em casa que encontrou no Discord e no Twitter um porto seguro. Em um servidor online, descobriu algo novo: pessoas sendo tratadas pelos nomes e pronomes com os quais se identificavam. Ali, onde ninguém o conhecia de antes, ele pôde ser quem sempre foi.
Não era “modinha”. Era liberdade.
Mas fora da internet, o mundo real continuava engessado. Principalmente por morar numa cidade pequena. E Gabriel, mesmo sem ter sofrido preconceito explícito, passou a encarar situações desconfortáveis após o início da transição.
Teve o nome antigo exposto em rodas de amigos. Ouviu provocações disfarçadas de piadas. E o pior, teve que repetir o básico. Seu nome, seu pronome, sua identidade. Mais vezes do que deveria. Ele aprendeu a cobrar respeito sem gritar. Mas também aprendeu a reconhecer quando o outro não quer respeitar.
“Se eu falo uma vez e a pessoa não respeita, tudo bem. Explico duas, três vezes. Mas se precisa repetir mais que isso, é porque ela não quer aceitar”.
Hoje, Gabriel cursa Ciências Contábeis. Gosta da área financeira e quer trabalhar em banco. Já participou de vários processos seletivos, inclusive no Sicredi. Num deles, avançou até a etapa do vídeo. Nele, falou com sinceridade: “Sou um homem trans”. Nunca mais obteve retorno.
“Fiquei com a sensação de que talvez eu não devesse ter dito. Mas eu não consigo mentir sobre quem eu sou”, desabafa.
A honestidade custa caro. Às vezes, literalmente. Para começar a transição hormonal completa, Gabriel precisa de bloqueadores que custam cerca de mil reais por mês. Um valor alto demais para quem banca a faculdade e os próprios gastos.
Mas talvez nada custe mais caro do que viver sem se ver no espelho.
Gabriel também é irmão de uma menina de dez anos com síndrome de Down e autismo. Ele praticamente a criou.
“Não consigo imaginar minha vida sem ela”, diz, com o olhar de quem aprendeu cedo o que é responsabilidade. “Quando olham torto pra ela, eu olho torto de volta. A gente se protege”.
Na faculdade, evita os banheiros comuns. As mulheres o olham torto quando entra no feminino. No masculino, ainda não se sente seguro. Por isso, vai ao banheiro família, perto do auditório da universidade.
“É o único lugar onde ninguém me julga”.
E é estranho pensar que alguém precise planejar tanto só para usar um banheiro.
Gabriel ainda não trocou o nome oficialmente. Não por falta de vontade, mas por estratégia. Quer fazer tudo de uma vez: nome, documentos e hormônios. A maioria das pessoas que não o conhece o trata no masculino. Mesmo idosos. Mesmo estranhos. O que parece simples, para ele, é uma vitória.
Porque o pior tipo de violência é aquela disfarçada de normalidade. A de quem diz: “Te conheci assim, não consigo te ver de outro jeito.” Gabriel ouve, respira fundo e responde: “Mas será que você quer me ver de outro jeito? Ou prefere continuar confortável?”.
Ele não quer aparecer. Não quer aplausos. Quer apenas existir em paz. Ser chamado pelo nome certo. Ser visto como quem é. Trabalhar na área que ama. Continuar cuidando da irmã. E quem sabe um dia, não precisar mais explicar tanto.
Gabriel nasceu duas vezes. A primeira, como qualquer um. A segunda, como só os valentes conseguem. Assumiu o próprio nome mesmo quando isso significou abrir mão de tudo que parecia mais fácil. Porque crescer é isso. E no caso dele, é também resistir. Com dignidade, força e uma vontade imensa de ser só o que sempre foi: um menino.
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