Entre um dia e outro
- Aline Chimello Marobin
- 23 de mai.
- 4 min de leitura
Atualizado: 25 de mai.

Às vezes, tudo o que eu queria era sentir o tempo passar.
Não porque eu quisesse detê-lo. Mas só para ter certeza de que estive aqui.
Porque, sinceramente, eu já não sei se vivi.
Sei que dormi. Sei que acordei.
Trabalhei, sorri em algumas fotos, chorei em silêncio no banho, pedi comida por aplicativo.
Respondi mensagens, participei de reuniões, marquei compromissos.
Mas viver? Viver de verdade... não sei.
O tempo tem escorrido por entre os dedos como cera de vela acesa.
A gente nem percebe que está queimando, até sentir o calor tocar a pele.
E, mesmo assim, às vezes seguimos sem reagir.
— Outro mundo.
— Este aqui.
E, entre um e outro, onde foi que me perdi?
Ou melhor: onde foi que nos perdemos?
Penso nisso toda noite, quando me deito.
Na cama, tudo é silêncio por fora e tumulto por dentro.
Me deito com a sensação de que o dia nem começou, e já acabou.
A vida parece estar no modo automático.
É como um carro que dirige sozinho, mas sem saber para onde vai.
A pandemia veio como um rasgo no tempo.
E, ao invés de nos acordar, nos adormeceu ainda mais.
Ficamos confinados em nós mesmos.
A casa virou trabalho. A mesa virou tela. A vida virou feed.
E, de tanto ver o mundo por uma janela digital, esquecemos de olhar pela janela real.
Passamos a viver por estímulos.
A cada dois segundos, um movimento com o dedo.
Um novo vídeo. Uma nova imagem. Uma nova dose de dopamina.
E, assim, fomos ficando cada vez mais distantes da experiência de estar.
Estar no tempo. No corpo. No presente.
Viramos zumbis com um celular e redes sociais nas mãos.
Gente que come sem sentir o gosto.
Que ama por emojis. Que respira por obrigação.
Gente que não vê mais as estrelas.
E eu sinto falta das estrelas. Tanto.
Não é drama. É constatação.
O sistema adoeceu. E a gente adoeceu com ele.
Vivemos para pagar boletos.
E, quando sobra um tempo, ainda nos sentimos culpados por descansar.
E o mais perverso? Nos disseram que isso era liberdade.
Nos deram o nome de liberdade, mas é um teatro.
Um teatro onde os papéis já estão escritos:
Produzir. Competir. Comprar. Postar.
Mas, quase nunca: existir.
Vivemos uma Matrix.
Não aquela dos filmes.
Uma Matrix onde a escolha é uma ilusão.
Achamos que decidimos, mas apenas repetimos padrões.
Compramos o que nos vendem. Desejamos o que nos ensinam a desejar.
Como se houvesse uma linha de chegada invisível, em que corremos para alcançá-la sem saber o porquê.
O sistema é eficiente.
Ele não precisa mais mandar, basta nos manter ocupados.
Exaustos.
Desconectados de nós mesmos.
Eu fujo quando consigo.
Para uma cachoeira onde o som da água cobre o barulho do mundo.
Ali, entre pedras e vento, algo em mim se reconecta.
O celular fica sem sinal e, curiosamente, é ali que eu volto a me ouvir.
Já percebeu como a natureza não tem pressa?
As folhas caem quando precisam cair.
O rio não corre por ansiedade, ele apenas segue.
E o céu se pinta em tons que nenhum filtro consegue imitar.
É nesse silêncio cheio de vida que eu lembro: estar viva é muito mais do que funcionar.
É estar presente, antes que tudo vire só memória sem vivência.
Às vezes, fujo para uma estrada de terra, daquelas que parecem não levar a lugar nenhum. Mas elas me levam.
Para dentro.
Paro o carro no acostamento, desço e respiro.
Só isso. Respirar.
Sentir o vento bater no rosto, escutar o canto de um pássaro, ver o pôr do sol sem pressa.
Coisas simples. Mas que, hoje em dia, parecem quase um luxo.
Outro dia, meu primo Tiago me disse algo que ficou ecoando em mim:
— “Eu trabalho de segunda a sexta, aquela rotina puxada, sabe? Mas no sábado eu fujo. Jogo futebol com os amigos, corro no parque da cidade, toco bateria até cansar. E, quando dá, vou pro mato, pro meio do nada. Fico ouvindo o som da água, o barulho das folhas. É ali que eu volto pra mim. Nem que seja por pouco tempo, eu volto.”
E essa fala dele ficou martelando na minha cabeça.
Talvez o que nos salve seja justamente isso: voltar.
Voltar para o corpo, para o instante, para o que ainda pulsa.
Voltar para a memória de quem fomos antes de o cansaço virar norma.
O tempo, quando desacelera, revela muita coisa.
Mostra as lacunas.
O que ignoramos correndo demais.
O quanto temos negligenciado a nós mesmos.
A alma, coitada, anda faminta.
Por presença. Por silêncio. Por verdade.
A gente precisa de respiros.
Mesmo que breves.
Brechas onde a vida possa entrar sem pedir licença.
Não é a solução.
É só sobrevivência.
Mas, às vezes, sobreviver com lucidez já é um ato de rebeldia.
E sabe o que mais me assusta?
É que muitos já nem percebem mais.
Nem se questionam.
Aceitaram que sentir é perda de tempo. Que descansar é fracasso.
Que se emocionar é fraqueza.
E, nesse processo, vão ficando secos por dentro.
Rígidos. Intolerantes.
Como se o excesso de produtividade tivesse expulsado o ser humano de si mesmo.
Eu tenho medo de me tornar pedra.
De perder a ternura.
De não saber mais o que me comove.
Por isso escrevo.
Pra ver se ainda me escuto.
Pra ver se ainda me alcanço.
No fundo, acho que a gente vai descobrindo formas de não enlouquecer completamente.
E, se isso for tudo o que podemos agora, que seja com alguma beleza.
Com alguma verdade.
Com alguma estrela visível no céu.
Realmente, é necessário fugir do automático.
Parabéns pelo texto!
Ler um teu texto foi uma viagem muito legal, deixei o tempo um pouco de lado durante a leitura. Muito bom, Aline.
Um assunto muito importante mesmo. 👏🏻
Que texto potente, Aline. Há nele uma coragem silenciosa de olhar para dentro e nomear o que tantos sentem, mas nem sempre conseguem traduzir. Sua escrita tem ritmo, poesia e verdade - e isso toca profundamente. Gostei especialmente da imagem da estrada de terra que leva para dentro: simples, mas simbólica e precisa. Continue escrevendo com essa honestidade e sensibilidade. Em tempos de tanto ruído, sua voz é respiro.