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A farsa do “felizes para sempre”

Atualizado: há 2 dias

Uma cidade interiorana liga duas mulheres opostas com histórias de horror parecidas, Gabriela e Jasmim viram os seus sonhos se tornarem pesadelos


O amor verdadeiro não  aprisiona, se virou cela, a liberdade é o próximo passo | Foto: Marielly Grabner
O amor verdadeiro não  aprisiona, se virou cela, a liberdade é o próximo passo | Foto: Marielly Grabner

Aviso de conteúdo sensível: a reportagem a seguir contém descrição de cenas de violência física e psicológica. Além disso, aborda temas como suicídio e relacionamento tóxico. Se você é sensível a estes tópicos, por favor considere não continuar.



Uma singela fração do território paranaense foi palco de muitas histórias de vida, transformação e recomeço. Cafelândia é uma pequena cidade no Oeste do Paraná, com aproximadamente 20 mil habitantes. Porém, nas suas entranhas esconde relatos sombrios sobre mulheres que tiveram a luz roubada por relacionamentos venenosos. 

Segundo a Organização Mundial de Saúde, três em cada cinco mulheres já sofreram em relacionamentos abusivos.

A cada 24 horas, ao menos oito mulheres são vítimas de violência no Brasil, segundo o boletim publicado pela Rede de Observatórios da Segurança, no ano de 2023. 

A perda do brilho começa aos poucos, assim como um amor, ela começa com palavras pequenas, com gestos insignificantes aos olhos de muitos, as lágrimas estão fazendo companhia. O sol se apaga. Os gritos crescem. O medo de voltar para casa aparece. E o controle, disfarçado de cuidado, assume o comando.

A treva se mostrou por inteira em uma noite de primavera, o tão sonhado desejo de ter um amor se tornou um pesadelo sem fim, o bairro silencioso, teve a sua calmaria interrompida por gritos de socorro. O medo da morte batia na porta de uma família brasileira.

Às onze horas da noite, Gabriela estava cuidando da filha de dois anos, quando Arthur, seu ex-esposo, chegou em um estado alterado de consciência e deitou-se na cama em que elas estavam. A jovem mulher decidiu sair do quarto por não aturar mais ficar perto de quem já a fez sofrer tanto. 

Foram esses minutos que se tornaram os piores momentos da  vida de Gabriela. Quem um dia ela tanto amou se tornou o seu tormento. Arthur ficou agressivo de repente, desferindo socos, tapas e puxões de cabelo, neste momento a mulher pensou que não iria estar viva para ver a sua querida filha crescer.

“Eu tentava sair e ele ia atrás e me puxava, rasgou a minha blusa, ele estava tão transtornado que não enxergava, ele não queria saber de mais nada, de quem estava ali, de quem que estava por perto. Eu nunca vi ele daquele jeito, era um relacionamento tóxico com palavras, tinha agressão verbal, mental, emocional, mas não agressão física”, relembra a mulher sobre o momento de terror vivido. 

Gabriela se tornou mais uma mulher dentro das estatísticas que crescem a cada ano no maior país da América Latina.


Até que a morte os separe: do altar ao silêncio


Do outro lado da cidade, o sorriso não aparece há tempos, as lágrimas estão sempre surgindo de forma inesperada no canto dos olhos, mesmo em momentos de alegrias, a tristeza está lá como plano de fundo. Jasmin não sabe mais o que é sorrir sem se sentir culpada por deixar seu passado para trás, muitos na pequena cidade gostam de relembrar a história que deixou cicatrizes em seu coração. 

Tudo começou com um sonho juvenil de querer construir a sua própria família. Como garota obstinada que sempre foi, Jasmin arrumou um jeito de realizar o seu desejo. Encontrou o cara certo para os seus planos, Vitor sempre teve uma boa índole, era um rapaz de uma ótima família. Então, Jasmin decidiu se casar sem se deixar abalar pelos conselhos das pessoas que a amavam.

“Eu queria ter uma família, não me importasse como. Eu era focada em casar na igreja, e na minha cabeça eu ia ter um filho ou dois, a gente ia viajar juntos, construir as coisas juntos. Tinha isso idealizado na cabeça”, ressalta a jovem.

No dia do casamento, em frente ao altar, foram feitos os juramentos que para Deus são eternos. Os noivos com olhos lacrimejados e as vozes trêmulas prometeram em frente à sacristia amar e respeitar, na alegria e na tristeza, na riqueza e na pobreza, por todos os dias de suas vidas até que a morte os separe. Mas, o que os desuniu foi a ânsia de viver. 

O casamento foi na segunda década dos anos 2000, sendo marcado pelo vestido esvoaçante da noiva e pela felicidade que não saia de seu rosto. Jasmin pensou que começaria o seu “felizes para sempre”, mas o destino tinha outras intenções para a jovem. Os sinais vinham com palavras agressivas e gritos. Jasmim pensava que tudo iria ser diferente depois de casados, pois começaram a viver uma vida tranquila. Todavia, aos poucos ela descobriu que o verdadeiro problema era quem estava ao seu lado. 

A cada ano que passava, Vitor se tornava mais agressivo e manipulador, a cada dia as torturas psicológicas aumentavam, os gritos se tornavam rotineiros e a vontade de viver se esvaia cada vez mais de Jasmin.

“Eu estava grávida, me lembro de estar trancada dentro do quarto e eu gritava muito, a minha vontade era de me jogar para baixo, eu me lembro que ele tinha gritado comigo por coisa boba, não tinha motivo de gritar e me maltratar daquela forma. Eu me tranquei dentro do quarto e ele batia na porta e gritava para eu abrir, só que eu estava tão saturada psicologicamente, que na minha cabeça eu tinha que acabar com aquela situação de alguma forma. Eu saí na rua, sem rumo, chorando, e a minha única vontade era só morrer”, Jasmin lembrou de um dos momentos que para sempre estará marcado em sua alma.

Assim como Gabriela, Jasmin se tornou mais uma vítima com o sonho de construir uma família transformada em pesadelo. As duas mulheres, com histórias delineadas por caminhos diferentes, se reconhecem nas cicatrizes. Durante a tempestade que a vida lhe impôs, os filhos foram as âncoras silenciosas que as sustentaram quando tudo ao redor virou destroços. O amor pelos herdeiros se converteu em um propósito para recomeçar, fazendo com que o desejo de viver apareça em cada pulsão do coração. 


Sinais do pesadelo: o abuso começa com flores


O abuso não começa com xingamentos e agressões, ele inicia com flores e chocolates, contudo existem sinais que aparecem desde o começo do relacionamento e acabam passando imperceptíveis.

A psicóloga Maria Barbara Girotto Pertile, especialista em prevenção e pós-venção de comportamento autolesivo e suicida, filosofia e autoconhecimento da sexualidade humana, comentou sobre os alertas vermelhos que aparecem em um relacionamento tóxico.

“Querem controlar a pessoa o tempo inteiro, monitorando com quem  está conversando, controlando com quem se relaciona, além do controle financeiro. Uma característica muito comum é afastar a vítima de todas as pessoas próximas, destruição da autoestima, menosprezar os sonhos da outra pessoa, como se não fossem válidos, as conquistas que a pessoa tem. Aos poucos a pessoa vai se sentindo insuficiente e a autoestima vai ficando cada vez mais frágil”, ressalta a psicóloga.

As bandeiras vermelhas passaram despercebidas por Jasmin que estava focada no sonho de construir uma família, mas ao relembrar o tempo de namoro do antigo relacionamento, recorda de momentos em que o veneno estava presente implicitamente. “Tudo o que eu fazia parecia que era errado. Era um relacionamento bem estranho, só que eu não via aquilo, eu achava que estava tudo bem para mim. O tempo foi passando e as datas mais importantes para mim eram os momentos em que ele mais fazia as coisas erradas, me maltratava na frente dos outros e sempre revertia o quadro para parecer que eu era a errada”, destaca a jovem mulher.


Cicatrizes marcadas na alma: a dor que não apaga


A palavra alma no dicionário significa “parte imaterial do homem, dotada de existência individual, e subsiste após a morte do corpo”. As marcas deixadas na alma pela violência perduram por toda a existência das vítimas, trazendo diversas consequências que afetam o físico, mental e espiritual. 

“Eu me perdi completamente de mim, de quem eu era. Até hoje eu vejo que não consegui voltar totalmente, a alegria que eu tinha de viver, de sair, de fazer as coisas que eu gostava, de me arrumar, agora que está voltando, sabe?  E já tem três anos que a gente se separou. Ele acabou com tudo, com a alegria que eu tinha, eu não me identifico mais com a pessoa que eu era, algo ali no meio me quebrou”, comenta Gabriela sobre as consequências que o relacionamento trouxe para a vida dela.
“Se alguém falar grosso comigo, já trava a minha garganta e faz eu voltar lá onde eu estava. Esses traços ficaram em mim e eu não sei se algum dia vou conseguir me libertar”, destaca Jasmin sobre o principal rastro deixado pelo antigo relacionamento.

Segundo a psicóloga Maria Bárbara, as vítimas dos relacionamentos tóxicos podem desenvolver “desde transtornos mentais como depressão, ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático até evoluir para questões mais intensas, como comportamento autolesivo e o suicídio”.

   As marcas físicas deixadas nessas mulheres irão sumir, os machucados com o tempo se curam, e o que ficará serão as cicatrizes com raízes no coração. O pontapé inicial para que essa situação seja superada é se reencontrar, descobrir quais são os hobbies, a comida predileta, se olhar com compaixão, além de reconectar com a rede de apoio, pois eles são de extrema importância nesse processo, irão ter o papel de ser o suporte emocional, auxiliar na reconstrução da autoestima e na redução do isolamento social. 

Para as mulheres que sofrem com relacionamentos tóxicos, a psicóloga Maria Bárbara deixa um conselho:

Busquem ajuda profissional para se fortalecer, porque nem sempre é fácil denunciar, porque, muitas vezes, há outras questões envolvidas. Essas mulheres precisam se fortalecer antes, elas precisam ter uma rede de apoio, precisam reconquistar, retomar a ser quem eram, se fortalecer para conseguirem ter forças, pois é um processo muito difícil”, ressalta a profissional da saúde.

Jasmin e Gabriela estão no processo de conhecer a nova versão que se tornaram após terem vivenciado as piores experiências de suas vidas. Os gritos se calaram nos dois lares, a primavera voltou a ser uma estação colorida e com esperança no ar de dias melhores que estão por vir. 

Alguns nomes foram trocados devido ao direito da proteção da fonte concedido pela Legislação Brasileira no Artigo 5º, inciso XIV.





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Produzido pelos acadêmicos do 5º período do curso de Jornalismo do Centro Universitário FAG, na disciplina de Webjornalismo, sob orientação do professor Alcemar Araújo.

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