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Sangue de caminhoneiro: a profissão que ultrapassa gerações

Filho que aprendeu a profissão com o pai segue na estrada, mesmo diante da desvalorização da categoria


Adonias trabalhou com o caminhão dos irmãos mais novos que se inspiraram nele para escolher a profissão | Foto: Arquivo Pessoal
Adonias trabalhou com o caminhão dos irmãos mais novos que se inspiraram nele para escolher a profissão | Foto: Arquivo Pessoal
“A liberdade é incrível. Ultrapassar a fronteira do município, depois a do estado, é como se você estivesse aprendendo a voar, eu poderia dirigir a noite, dois, três dias e não ficava cansado, não sentia fome, a empolgação tomava conta”, com estas palavras, Adonias Palhano Rocha, descreveu o entusiasmo das primeiras viagens como caminhoneiro.

A vida na estrada nunca foi fácil, diante do brilho nos olhos dos primeiros quilômetros escondia-se  o medo do desconhecido e a saudade da família. 


“Foi muito difícil, sofrido mesmo, não conhecia as estradas, o caminhão era mais antigo, então estragava muito. Nesta época meu filho mais velho era pequeno, e deixar ele em casa era desafiador”, conta.

Adonias, o mais velho de seis irmãos, nasceu no interior do Paraná, em um distrito de Guarapuava, que mais tarde foi emancipado como o município de Cantagalo. Por ser filho de agricultores, cresceu na roça e sua infância foi cercada de plantações, brincadeiras ao ar livre junto aos animais, e seu primeiro meio de transporte foi um cavalo chamado Pangaré. Quando tinha oito anos, seu pai comprou o primeiro carro, um Ford Corcel. E esse, sim, era veloz para o menino, tinha 68 cavalos de motor. 


Embarque ao novo destino


Por trabalhar desde cedo, Adonias não conseguiu terminar os estudos. Frequentou a escola até a quarta série - Ensino Fundamental nível I que as escolas do interior ofereciam. Continuou morando no sítio com os pais até completar 24 anos de idade, quando já estava casado e com um filho de um ano.  Neste período, ainda não tinha CNH (Carteira de Habilitação Nacional).


A vida na área urbana fez com que Adonias buscasse novas oportunidades de empregos que até então não tinha conhecimento. Assim foi trabalhar em uma fábrica de portas do município. Esse foi o primeiro passo para que sua vida mudasse para sempre.


“Quando eu saí da roça e vim morar na cidade, não tinha profissão nenhuma. Então, fiquei sem escolha, foi a oportunidade que apareceu. Precisei aprender a trabalhar com caminhão. A empresa que me contratou não tinha motorista, então o chefe me deu essa missão, de aprender a dirigir para transportar a mercadoria”, relembra como iniciou o seu primeiro trabalho formal. 

Adonias foi aluno da última turma que obteve a carteira de motorista diretamente pelo Detran (Departamento Estadual de Trânsito). O processo foi custeado pela empresa, e a habilitação foi concedida diretamente na categoria C, que autoriza a condução de caminhões de pequeno porte, como os modelos ¾, ideais para o transporte de cargas urbanas. Essa categoria também contempla caminhões do tipo toco (semi pesado, com dois eixos), truck (pesado, com três eixos - um dianteiro simples e dois traseiros duplos), bitruck (pesado, com quatro eixos - dois dianteiros, sendo um direcional, e dois traseiros, um deles tracionado), além do cavalo mecânico desacoplado.


A primeira viagem


O primeiro fiel companheiro de estrada de Adonias, durante seis anos, foi um Mercedes-Benz modelo 1313 de 1974.

“A primeira viagem foi no ano de 1999, de  Cantagalo (PR) até Rio de Janeiro (RJ), foram 1.200 Km até lá. Chegando na cidade, tinha que fazer a entrega, então além da viagem ser longa eu ficava mais dois ou três dias e voltava para começar de novo rumo a outro destino”, revela o motorista.

Com os anos, a experiência aumentava, o caminhoneiro que já viajava cada vez mais longe, começou a trabalhar em outras empresas, carregar cargas diversas e ficar ainda mais tempo longe de casa.


“Eu tinha dificuldade para encontrar os lugares quando era a primeira vez que ia até lá. Usava mapa, pedia informação, mas acabava me perdendo. Às vezes precisava dormir em lugar afastado, o caminhão encalhava, quebrava… e até pra pedir ajuda era complicado, porque não tinha celular pra ligar”, descreveu Adonias.

Um dos momentos mais marcantes de sua carreira foi quando a segunda filha nasceu, no ano de 2002,


“Eu estava no interior de Rondônia, em lugar bem remoto, era para ser uma viagem rápida, mas durou em torno de 20 dias. Descobri que ela veio ao mundo porque todos os dias eu ligava de um telefone orelhão que tinha no local. Quando cheguei em casa, já fazia doze dias que ela estava lá, já nasceu com saudades”, conta alegremente o pai. 

A lei para quem vive na estrada


Quem depende do transporte rodoviário para ganhar o dinheiro que irá sustentar sua família, se expõe a alguns riscos, como acidentes de trânsito, má condições das rodovias, viajam a semana toda, sem exceção a feriados ou finais de semana, por isso depende da legislação para garantir os recursos necessários para conseguir condições dignas de trabalho. A lei que ampara os caminhoneiros no Brasil é a Lei nº 13.103/2015, que regulamenta a profissão de motorista de transporte rodoviário de cargas e de passageiros, estabelecendo direitos, deveres e condições de trabalho.


Para Adonias, que percorre as estradas brasileiras há mais de duas décadas, a diferença nas condições de trabalho no período em que ele iniciou e hoje são alarmantes,


“Quando eu comecei, as leis não determinavam a jornada do caminhoneiro, não tinha nada que assegurasse quantos dias seguidos podíamos viajar sem tirar folgas, ou quantas horas o caminhão poderia rodar por dia, não havia lei de descanso, tempo determinado para almoço ou espera, então o motorista poderia ser explorado, dependendo apenas do bom senso do empregador”, descreve.

Atualmente no Brasil, o caminhoneiro pode dirigir por até 8 horas diárias, com a possibilidade de acréscimo de 2 a 4 horas extras, caso haja acordo coletivo. A cada 24 horas, é obrigatório um descanso mínimo de 11 horas, além de intervalos de 30 minutos a cada 5 horas de direção contínua. A norma também assegura um descanso semanal de 35 horas consecutivas e determina que o tempo de espera para carga e descarga não seja contabilizado como jornada de trabalho.


Paixão que vem de berço


Jaiton Miquéias Passos Rocha é o filho mais velho de Adonias, formado em sociologia, não encontrou na docência a liberdade que a profissão do pai parecia lhe conceder. Por paixão e em busca de realizar o sonho, alterou sua carteira de habilitação para a categoria E, que lhe permite dirigir qualquer modelo de veículo terrestre em território brasileiro.


Para ele, seguir os passos do pai é a única motivação por escolher viver na estrada.

“A influência para eu ser caminhoneiro é 100% do meu pai. Cresci vivendo essa realidade, aprendi a ler nas placas de trânsito. Foi através dele que esse amor pela profissão foi crescendo. Tudo o que eu sei, devo a ele. O motorista que sou hoje é resultado de tudo o que aprendi com ele”, conta Jaiton

Mesmo trabalhando como caminhoneiro, o jovem destaca que sua escolha não tem relação com bons salários ou valorização profissional. Pelo contrário, ele afirma que a profissão está cada vez mais desvalorizada, tanto pela legislação quanto pela sociedade.


“A categoria está envelhecendo, e os motoristas atuais são, em sua maioria, pessoas com muitos anos de estrada. Falta atratividade e valorização salarial, além de ética e respeito no trabalho. O motorista é explorado porque manter um profissional custa caro. A estrutura é precária, as rodovias pioram a cada dia, e tudo isso afasta os mais jovens. Todo mundo que conheço na minha idade que trabalha como caminhoneiro entrou por influência de algum familiar que já atua na profissão. O salário não compensa, a distância da família pesa, o sofrimento é grande, e o único motivo para continuar é a paixão”, lamentou.
Jaiton teve aulas de direção com o pai quando começou a trabalhar na mesma frota logística | Foto: Arquivo pessoal
Jaiton teve aulas de direção com o pai quando começou a trabalhar na mesma frota logística | Foto: Arquivo pessoal

Os caminhoneiros transportam 80% das cargas que existem no país. Uma pesquisa realizada pela AGP (Agente de Gestão de Pessoas) em maio de 2024, a pedido da CNTA (Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos), apresenta que a maioria da idade média dos motoristas é de 47 anos e está há pelo menos 17 anos na profissão. O alto custo dos combustíveis,  o mau acesso a banheiros, alimentação e segurança são os principais pontos levantados pela pesquisa como os motivos para a baixa atratividade da profissão. 


O caminhoneiro carrega a responsabilidade pela carga, pelo caminhão e pela segurança de todos que cruzam seu caminho nas rodovias movimentadas do país. Em troca, enfrenta o desrespeito da sociedade: olhares tortos nos postos, proibição de usar banheiros e cobrança por um banho quente. A alimentação é do jeito que dá. Mas, se eles pararem, o Brasil também para.


Hoje, o legado de Adonias, que alcançou o filho Jaiton, também envolveu dois de seus irmãos, Daniel e Merkes, que seguem seus passos cruzando fronteiras pelo país. Aquele jovem de 28 anos, que deixou o filho pequeno em casa para tentar a vida na estrada, nunca mais parou. Em 2013, alterou sua carteira de motorista para a categoria E e se especializou no transporte dos mais variados tipos de carga. Hoje, é pai de três filhos - o mais novo, Miguel, brinca com seus caminhõezinhos de madeira, esperando chegar a sua vez.


Imagem tirada por Adonias em uma viagem ao Nordeste que durou 100 dias | Foto: Arquivo Pessoal
Imagem tirada por Adonias em uma viagem ao Nordeste que durou 100 dias | Foto: Arquivo Pessoal

1 comentário


Que texto ótimo, você arrasa!!

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Produzido pelos acadêmicos do 5º período do curso de Jornalismo do Centro Universitário FAG, na disciplina de Webjornalismo, sob orientação do professor Alcemar Araújo.

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