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Quem não ouve também se emociona

Como a qualidade das legendas dos conteúdos que consumimos afeta o acesso de pessoas surdas a conteúdos midiáticos

Legenda com tradução e escrita errada no filme Scott Pilgrim Contra o Mundo. Crédito da foto: Reprodução/Netflix
Legenda com tradução e escrita errada no filme Scott Pilgrim Contra o Mundo. Crédito da foto: Reprodução/Netflix

Quando era criança, não gostava de ir ao cinema em Cascavel, pois eles exibiam todos os filmes com legendas embaixo. Ia ao médico e via a TV no consultório que, mesmo com o volume alto, tinha colocado as Closed Captions, que é um sistema de transcrição de falas e outros sons de um programa de TV para texto. Achava desnecessário, que tirava a atenção das cenas que estavam acontecendo no filme e também que “incomodava” o que passava na TV. Porém, conforme crescia, percebi a importância disso para a acessibilidade das pessoas surdas à cultura e à informação. 


Em 2024, com a ascensão do filme brasileiro “Ainda Estou Aqui”, a cantora Anitta pediu que grandes clássicos da cinematografia brasileira fossem traduzidos e legendados para o inglês. Com esse pedido, surgiu a discussão da necessidade de termos mais legendas na nossa língua nativa, antes de expandirmos internacionalmente.


A Instrução Normativa n°165 da Agência Nacional do Cinema (Ancine) foi sancionada em 2022 e centraliza todas as formas de acessibilidade nos smartphones. A questão é: para as pessoas terem acesso às legendas simultâneas nas salas de cinema, elas precisam baixar um aplicativo. Após instalar o programa e seguir as instruções, é possível sincronizar o que é exibido no aparelho com o filme que se passa na telona do cinema. A partir daí, a pessoa tem acesso a recursos como audiodescrição, legendas e Libras no celular. Porém, entramos em uma seara muito mais complexa, uma parecida com a que eu me encontrava na infância: a pessoa vai perder a cinematografia da telona para focar na telinha?


O programa “Legenda Nacional” é uma iniciativa que busca fazer com que o grandes públicos entendam a necessidade de legendas em português para as pessoas falantes de português surdas. Dentro do programa existe a iniciativa “Legendas para quem não ouve, mas se emociona”,  uma resistência que busca a democratização das legendas nos conteúdos produzidos midiaticamente. A grande crítica é: por que em um mundo considerado tão conectado, ainda existe essa lacuna tão grande de acessibilidade?


Marcelo Pedrosa, idealizador do programa “Legenda Nacional”, disse, em entrevista ao Jornal de Brasília, em resposta a resolução que institui o uso do smartphone para acessibilidade que

“Essa solução vai contra os princípios do desenho universal, especialmente no que diz respeito ao mínimo esforço físico [visual] e à comodidade, elementos essenciais do conceito de acessibilidade”

 Já que, enquanto a pessoa tiver que seguir a legenda simultaneamente no celular, ela não estará mais focando no filme.


Danilo,  deficiente auditivo, em protesto nas redes sociais sobre a falta de legenda em cinemas. Crédito da foto: Campo Grande News
Danilo,  deficiente auditivo, em protesto nas redes sociais sobre a falta de legenda em cinemas. Crédito da foto: Campo Grande News

Para nós, ouvintes, nos colocarmos no lugar das pessoas surdas, vamos fazer um experimento: entre no TikTok, ou até mesmo nos reels do Instagram, ou YouTube, com o seu telefone sem volume. Perceba quantos vídeos você consegue compreender e quantos conteúdos você não entende. Difícil, não?


Ano passado, a Max, streaming vinculado à HBO, divulgou que começaria a utilizar uma Inteligência Artificial do Google para legendar seus conteúdos, diminuindo em 80% o tempo para legendação. Entramos em um conflito de vontades: mais acesso às legendas, porém uma pior qualidade delas. Quem nunca assistiu um vídeo no Instagram ou Tiktok que foi legendado pela IA automática do CapCut e se tornou ainda mais difícil compreender  por causa da legenda com erros gramaticais?


De acordo com a Norma 15.290 da ABNT e com o “Guia para produções audiovisuais acessíveis” oferecido pelo Ministério da Cultura, todas as legendas devem seguir um padrão que as tornem entendíveis, seguindo os critérios de precisão, sincronização, legibilidade, concisão, clareza e velocidade de leitura. Ou seja, será que uma legenda produzida por IA, seguiria esses critérios? Além de, claro, considerarmos que essas IAs também realizaram traduções e isso pode levar a vieses, já que uma palavra pode ser traduzida de diferentes formas. Uma frase pode ter nuances de significado que uma IA não consegue captar, levando a uma tradução que não reflete com precisão a intenção original, dificultando o entendimento.


A complexidade acerca do assunto se expande cada vez que expomos um ponto sobre, e vai muito além da simples disponibilização de um recurso. Um futuro mais inclusivo deriva da necessidade de colocar em uma balança a inovação tecnológica e o respeito ao ser humano. Não basta legendar, é necessário oferecer qualidade, pensando em quem vai lê-lo, o ser humano. 


A acessibilidade não deve ser um favor contemplado, mas um fato intrínseco a qualquer produção midiática. Somente quando a qualidade das legendas for prioritária e a experiência do espectador surdo for considerada em todas as etapas de produção e exibição, poderemos afirmar que a mídia está cumprindo seu papel de informar, entreter e emocionar a todos, sem barreiras. Afinal, quem não ouve também se emociona, e merece ter acesso pleno a tudo o que o mundo tem a oferecer.


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Produzido pelos acadêmicos do 5º período do curso de Jornalismo do Centro Universitário FAG, na disciplina de Webjornalismo, sob orientação do professor Alcemar Araújo.

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