“Não estou nem aí”: a fala do poder diante do genocídio negro
- Guilherme Lopes
- 9 de jun.
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Atualizado: há 6 dias
Entre o silêncio institucional e o descaso declarado, ecoa a dor de um povo marcado pelo racismo estrutural e pelo passado escravocrata

Em 13 de maio de 1888, há exatos 137 anos, a Lei Áurea foi aprovada, encerrando mais de 353 anos de exploração da mão de obra escravizada no Brasil. Contudo, o fim da escravidão não representou o fim da discriminação.
É impossível compreender os casos atuais de discriminação sem considerar o passado escravista que moldou nossa sociedade. Exemplos recentes, como a agressão de Sandra Mathias Correia de Sá a um entregador negro, em abril de 2023, e as mortes brutais no Carrefour - João Alberto Silveira Freitas, em Porto Alegre (2020), Januário Alves, em Osasco (2009), além de casos em São Bernardo do Campo (2018) e o assassinato do refugiado congolês Moïse Kabagambe, no Rio de Janeiro (2022) - ilustram o que o advogado e ex-ministro Silvio Almeida classificou como “racismo estrutural”.
Em sua obra de 2019, Almeida explica que o racismo no Brasil não se resume a atos isolados de discriminação individual, mas está profundamente enraizado nas estruturas sociais, políticas, econômicas e jurídicas do país.
Genocídio Negro e a Letalidade Policial
Um dos aspectos mais cruéis do racismo estrutural é a letalidade policial, que atinge desproporcionalmente a população negra. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2020, o Brasil registrou 6.416 pessoas mortas pela polícia, sendo cerca de 78,9% homens negros com até 39 anos. Em junho de 2021, 78% dos mortos ainda eram negros. Dados de novembro de 2024 apontam que quase 90% dos mortos pela polícia em 2023 eram negros.
No estado de São Paulo, os primeiros oito meses de 2024 registraram um aumento de 78,5% na letalidade policial contra pessoas negras, período que coincidiu com a implementação da “Operação Verão”, na Baixada Santista. Diante das denúncias de excessos e da alta letalidade, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, respondeu.
"Pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não estou nem aí."
Esse abandono ecoa a dura realidade que Abdias do Nascimento classificou como “genocídio negro”. Para Nascimento, não se trata apenas da violência letal direta, como os assassinatos pela polícia ou crimes de ódio. Trata-se de um processo mais amplo e multifacetado, que inclui a negação de direitos fundamentais, a exclusão social, econômica e cultural, a marginalização, a invisibilidade histórica e a desvalorização sistemática da vida negra.
Múltiplas Faces da Desigualdade e o Medo do Futuro
O genocídio da população negra se expressa em diversas esferas, não apenas na violência policial. A desigualdade educacional é gritante: em 2023, apenas 48,3% da população negra e parda havia concluído o ensino médio, contra 61,8% entre os brancos. No ensino superior, a disparidade é ainda maior: entre os jovens de 18 a 24 anos, apenas 19,3% dos negros estavam na universidade, contra 36% dos brancos. Em 2010, negros representavam apenas 29% dos estudantes de mestrado e doutorado, e ínfimos 0,03% dos doutores do país.
A sub-representação em espaços de poder também é alarmante: dos 1.626 parlamentares eleitos em 2018, menos de 4% eram negros. Incluindo pardos, o número chegava a 27%. No Senado Federal, dos 81 senadores, apenas três se declararam negros (3,7%). Em 134 anos de existência, a Suprema Corte já contou com 168 ministros, mas apenas três eram homens negros.
Até hoje, o STF nunca contou com uma mulher negra como ministra. A corte, inaugurada em 1891, só teve seu primeiro ministro negro em 1907, com a posse de Pedro Lessa. O último foi Joaquim Barbosa, de 2003 até sua aposentadoria em 2014.
Essa exclusão se estende à produção cultural: entre 1965 e 2014, apenas 10% dos livros publicados no Brasil eram de autores negros. Entre 2002 e 2012, somente 2% dos filmes nacionais contaram com direção de pessoas negras.
Wallace Araújo, militante do movimento negro, expressa receio com o futuro do povo negro, reconhecendo os “meios muito conturbados” e os “muitos desafios para conseguir conquistar algo”. Ele vê esperança em governos alinhados com os direitos do povo negro, mas a incerteza sobre futuras gestões o preocupa. “Um futuro melhor, com certeza, mas estamos a passos de formiguinhas”, complementa.
Importância das Ações Afirmativas e o Combate à Objetificação

Para Wallace Araújo, as ações afirmativas são cruciais: visam à igualdade, combatem a discriminação e promovem a inclusão de grupos historicamente desfavorecidos, garantindo acesso à educação, ao trabalho e a outros direitos fundamentais. A criação de políticas de cotas nas universidades gerou uma “mudança de representatividade”, permitindo que estudantes de escolas públicas, negros, indígenas e outros grupos tivessem acesso ao ensino superior.
O debate racional sobre as ações afirmativas é essencial, pois:
“Além de nos dar visibilidade, promove a igualdade e a justiça social, combate o racismo e outras formas de discriminação e preconceito”.
Wallace Araújo afirma ainda que esse debate:
“Ajuda a conscientizar a sociedade sobre a desigualdade, mostrando que todos são importantes, têm voz, vez e lugar. Se não fosse esse debate, ainda estaríamos presos às 'correntes' ou acorrentados nos 'navios negreiros'”.
A hipersexualização do corpo negro é uma das manifestações mais insidiosas do racismo, enraizada em séculos de escravidão e colonialismo. Historicamente, tanto homens quanto mulheres negras foram desumanizados e reduzidos a meros objetos sexuais, desprovidos de complexidade emocional, intelectual e afetiva. Para a mulher negra, isso se manifestou na imagem da “mulata exportação”, da “sensualidade naturalizada” ou da “boa de cama” - estereótipos que ignoram sua força, inteligência e capacidade de amar e ser amada em relações sérias. Já para o homem negro, a hipersexualização se traduziu no estereótipo do “negão” forte, viril, sexualmente inesgotável e, muitas vezes, violento - um papel de fetiche que nega sua humanidade integral.
Essa objetificação tem consequências profundas na vida de homens e mulheres negras. Como aponta Wallace, ela os reduz a “apenas uma parte do corpo, um ser não pensante, sem sentimento”. Na prática, isso se reflete em dificuldades para construir relacionamentos afetivos saudáveis, na exposição a abusos e assédios sexuais - frequentemente justificados pelo agressor sob o pretexto de uma suposta “natureza” sexual do corpo negro - e na negação da subjetividade e individualidade dessas pessoas.
A mídia e a cultura popular desempenham um papel decisivo na perpetuação desses estereótipos, reforçando uma visão limitada e distorcida da sexualidade negra. Essa visão precisa ser urgentemente desmistificada, para que a plenitude da identidade e dos desejos das pessoas negras seja reconhecida e respeitada.
Racismo no Esporte e a Luta por Ser Visto como Gente
O futebol, esporte mais popular do Brasil, também é palco de racismo. O relatório sobre Discriminação Racial no Futebol identificou 250 casos no país, incluindo 22 em território nacional e 28 envolvendo atletas brasileiros no exterior. Um episódio recente, envolvendo o atacante Luighi, do Sub-20 do Palmeiras, é um lembrete doloroso dessa realidade: o jogador deixou o campo aos prantos no Paraguai após um torcedor do Cerro Porteño imitá-lo como um macaco. Seu grito de revolta -
“É sério? Vocês não vão me perguntar sobre o ato de racismo que ocorreu comigo? É sério? Até quando vamos passar por isso? Me fala, até quando? O que fizeram comigo é crime” - ecoa a indignação de uma população que ainda luta por reconhecimento e respeito.
Nesse contexto de luta e resistência, a história do Vasco da Gama se destaca como um marco. No início do século XX, o futebol brasileiro era predominantemente elitista e branco, com regras que excluíam a participação de jogadores negros e de camadas populares. O Vasco, no entanto, adotou uma política de inclusão. Em 1923, surpreendeu ao conquistar o Campeonato Carioca com um time majoritariamente formado por atletas negros e operários - os lendários “Camisas Negras”. A vitória desses jogadores, representantes de setores historicamente marginalizados, gerou profundo incômodo entre os clubes da elite.
Em 1924, numa tentativa de manter a segregação, esses clubes criaram uma nova liga com estatutos explicitamente discriminatórios, exigindo que o Vasco excluísse seus atletas negros e pobres para poder participar. A resposta do clube, no entanto, foi um ato de coragem: recusou-se a acatar as exigências preconceituosas e enviou uma carta que se tornaria símbolo de resistência - a “Resposta Histórica”. Nela, o Vasco defendia a dignidade de seus atletas e reafirmava seu compromisso com a inclusão, mesmo que isso significasse abrir mão de disputar a liga principal.
Ao sustentar essa posição, o clube não apenas se posicionou contra o racismo, mas também abriu caminho para a transformação do futebol brasileiro, tornando-o mais acessível, representativo e popular.
Racismo Religioso: O Genocídio Silencioso da Fé Negra no Brasil

O racismo religioso não é apenas um ato de intolerância: ele se manifesta como uma expressão direta do genocídio da população negra no Brasil. A violência contra terreiros, a demonização de entidades e a profunda falta de conhecimento sobre as religiões de matriz africana são os principais combustíveis que alimentam estereótipos preconceituosos contra quem é pejorativamente chamado de “macumbeiro”.
Essa desinformação gera situações de vulnerabilidade, como explica o babalawo Roberto Fernandes.
“Muitas vezes, saio com as roupas do culto e recebo olhares de desaprovação. Não que eu tenha vergonha, mas acredito que é por falta de conhecimento. Precisamos explicar para quem desconhece o culto o que realmente significa a nossa religião, e é isso que o Festival de Oxum vem demonstrar”.
Historicamente, a perseguição às religiões de matriz africana e os ataques a seus templos estão intrinsecamente ligados à desumanização da população negra. Ao demonizar suas práticas, divindades e rituais, o racismo religioso tenta anular a identidade e a dignidade desses povos. Essas religiões foram sistematicamente criminalizadas, rotuladas como “bruxaria” ou “feitiçaria”, levando seus praticantes a serem perseguidos pela polícia como se fossem criminosos. A criminalização da fé negra contribui diretamente para a marginalização e a vulnerabilidade dessa parcela da população.
Atualmente, a ascensão de certos discursos neopentecostais fundamentalistas tem intensificado o ódio e a violência contra as religiões afro-brasileiras. Esses discursos frequentemente associam orixás e entidades a figuras demoníacas, legitimando ataques e agressões que violam a liberdade religiosa e ferem a dignidade de milhares de brasileiros.
Urgência de um Olhar Crítico sobre o Genocídio Negro
Ser negro no Brasil de hoje é “desafiador”, como afirma Wallace. O maior desafio, segundo ele, é “sermos vistos como gente”, já que o negro ainda é “massa de manobra, mão de obra barata, o negro ainda é apontado nas esquinas, nas ruas”. A luta central, portanto, é “contra a marginalização e a violência do povo negro”.
Diante desse cenário de persistente desigualdade e brutalidade, a fala desdenhosa do Poder Público não é apenas um ato de insensibilidade - é sintoma de uma estrutura racista que perpetua o genocídio da população negra no país. A história, tecida com o sangue e a resistência do povo negro, clama por um Brasil que finalmente se reconheça em sua inteireza, que desfaça os retratos excludentes e construa uma nação em que a cor da pele não determine o direito à vida, à dignidade e à igualdade de oportunidades.
A luta por esse país - onde todos caibam no retrato - segue urgente e inadiável. É fundamental que a sociedade brasileira e suas instituições enfrentem, com firmeza e responsabilidade, as raízes históricas e contemporâneas desse genocídio. Não basta lamentar; é preciso agir com coerência.
A adoção de políticas públicas eficazes, o combate rigoroso à letalidade policial, a promoção da equidade educacional e a presença efetiva de pessoas negras em todos os espaços de poder são imperativos inegociáveis.
A voz do samba, que denuncia o “avesso da história”, e o grito de “não estou nem aí” vindo do poder, devem se converter em faíscas de uma transformação profunda. Somente por meio de um compromisso coletivo e de uma crítica constante às estruturas racistas será possível construir uma nação justa - onde a vida negra importe e seja, enfim, plenamente valorizada.
E há quem diga que racismo não existe. Ele está tão enraizado em nossa sociedade que muitos nem o enxergam. Parabéns pela reportagem, Guilherme. Falar sobre racismo incomoda e isso é necessário para que haja reflexão e transformação.
👏👏 muito bom Guilherme Parabéns meu nobre.
👏👏👏👏
parabéns pelo texto!
👏👏