Do silêncio à sobrevivência: a dor como território de transformação
- Daniela Dalmoro
- 7 de jun.
- 5 min de leitura
Atualizado: 8 de jun.
No abismo do sofrimento, o silêncio se desfaz em palavras, e a dor encontra passagem para se tornar cura, força e memória

E se a vida fosse decidida em um único ato? Uma decisão irreversível, marcada pelo desejo de parar. Quando a mente perde o controle e não enxerga mais escolhas, surgem desejos obscuros e consequências definitivas.
A depressão é um transtorno que provoca tristeza profunda e persistente. A ansiedade, embora seja uma emoção natural, quando ignorada ou subestimada, pode desencadear crises recorrentes de angústia e mal-estar. Juntas, somadas ao cansaço diário, essas condições podem evoluir para a síndrome de burnout, que leva à exaustão emocional e física.
Segundo dados recentes, em 2024, o Brasil registrou um aumento de 68% nos afastamentos por problemas relacionados à saúde mental — quase meio milhão de licenças, o maior número da última década. Essa realidade escancara o que muitos evitavam enxergar: a saúde mental está em crise, e o sofrimento tem rostos.
Entre adolescentes brasileiros, a situação também se agravou. Entre 2014 e 2024, os atendimentos por transtornos de ansiedade no Sistema Único de Saúde (SUS) aumentaram 3.300% entre jovens de 15 a 19 anos, passando de 1.534 para 53.514 atendimentos anuais. Entre crianças de 10 a 14 anos, o crescimento foi de 2.500%, saltando de 1.850 para 24.300 atendimentos.
Estudos internacionais indicam que cerca de 11,6% dos jovens entre 5 e 24 anos apresentam ao menos um transtorno mental, sendo os mais comuns a ansiedade, a depressão e os transtornos de conduta.
Esses números não são apenas estatísticas: são vidas. Histórias silenciosas. Por isso, é preciso falar, ouvir e compreender que saúde mental é parte essencial da vida. Buscar ajuda não é sinal de fraqueza - é um caminho para a cura e o amadurecimento.
Infância ameaçada e juventude sobrecarregada
O contato com as palavras “ansiedade” e “depressão” muitas vezes chega tarde - mas, em outros casos, cedo demais. Problemas familiares, bullying escolar e abusos na infância destroem a fase mais doce da vida: tempo de leveza e alegria.
A psicóloga Emeli Dalmoro afirma que os transtornos de saúde mental afetam a rotina de muitas pessoas.
“A ansiedade deixou de ser algo pontual e passou a fazer parte da vida diária, afetando o sono, a alimentação e os relacionamentos. Nos últimos anos, especialmente após a pandemia, temos observado um crescimento significativo nos casos de ansiedade, depressão e burnout. A rotina acelerada, as pressões sociais e profissionais, o uso excessivo de tecnologia e a falta de tempo para o autocuidado estão entre os principais fatores que contribuem para esse cenário”, explica.
Foi o que aconteceu com Gabrielly Bertolini, que, aos 15 anos, conheceu a ansiedade e a depressão após enfrentar problemas no colégio. “Na época, eu tinha muito medo e preconceito com a doença. Cresci vendo minha mãe com depressão crônica e não sabia o que esperar”, conta. Aos 17, a separação da família foi o gatilho para um colapso emocional. “Tentei lidar com a frustração, tristeza e medo sozinha, mas chegou a um ponto em que eu não estava mais conseguindo”.
A ansiedade, muitas vezes, pode ser invisível ou, como no caso de Gabrielly, pode se manifestar fisicamente. Depois de algum tempo, ela recebeu o diagnóstico de transtorno de escoriação, também conhecido como dermatilomania ou skin-picking. Trata-se de um transtorno mental que leva à compulsão de “cutucar”, arranhar ou manipular a pele, podendo causar lesões. De certa forma, foi um alívio para Gabrielly saber que, apesar de não ser um comportamento normal, havia tratamento. “As minhas pernas estavam cheias de marcas, e eu tinha muita vergonha de usar shorts ou vestidos naquela época”, relembra.
Em um período crítico da doença, Gabrielly sentia um vazio imenso e já não encontrava alegria nas coisas cotidianas: “Eu queria parar aquela sensação ruim, aquele sentimento vazio. Em um ato de desespero, me cortei. Queria parar ou sentir alguma coisa. Mas, no meio do caminho, me deu um medo ainda maior de fazer as pessoas que eu amava sofrer. Então, parei”.
A jovem foi consumida por arrependimento e culpa. “Até que contei para minha mãe. Buscamos novamente os médicos, troquei os medicamentos e veio o diagnóstico de ansiedade”, relata.
Em meio às crises, Gabrielly desenvolveu marcas visíveis em sua pele. “A cicatriz no meu braço me deixava triste e envergonhada. Pedi à minha mãe para cobri-la com uma tatuagem - uma borboleta, símbolo de mudança. E foi isso que aquele momento representou para mim: dor, sim, mas também transformação”.

A realidade de Gabrielly não é isolada. Com a pandemia e o retorno acelerado à “normalidade”, a sociedade mergulhou em um ritmo alucinante. O burnout, antes associado a profissões de alta pressão, agora atinge estudantes, jovens e até adolescentes. A busca por produtividade e aprovação constantes virou sinônimo de sucesso, e descansar passou a ser visto como fraqueza ou preguiça.
A psicóloga Emeli reforça que “estamos vivendo uma cultura de produtividade tóxica. As pessoas sentem culpa por parar, quando, na verdade, o descanso é uma necessidade vital”.
Os números não são frios. Eles representam vidas como a de Gabrielly, que, após buscar ajuda médica, encontrou novos caminhos. “Contei para minha mãe. Fomos ao médico, ajustamos a medicação e recebi o diagnóstico. Foi um recomeço”.
A vida é cheia de atos irreversíveis, sim - mas também é feita de recomeços. A dor não precisa ser um ponto final. Pode ser, como a borboleta, o início de uma nova fase.
Que nossa sociedade aprenda a ouvir mais, julgar menos e estender a mão, porque saúde mental é a vida de alguém - alguém que tem pais, irmãos, amigos e filhos.
A saúde mental precisa ser tratada com a mesma seriedade que damos à saúde física. Reconhecer os próprios limites, buscar apoio psicológico e falar abertamente sobre o que se sente não são sinais de fraqueza: são atos de coragem e amor-próprio. Cada história, como a de Gabrielly, mostra que é possível recomeçar - mesmo depois da dor.
Por isso, é urgente quebrar tabus, escutar sem julgamentos e oferecer acolhimento. Ninguém precisa enfrentar tudo sozinho. Cuidar da mente é cuidar da vida.
Vivemos em uma sociedade onde o silêncio diante do sofrimento mental ainda é a regra, não a exceção. Muitos carregam dores invisíveis, que se manifestam silenciosamente, afastando-os do convívio social e do cuidado necessário. A crescente crise de saúde mental revela um problema estrutural que vai além do indivíduo: envolve escolas despreparadas, famílias desinformadas e políticas públicas insuficientes.
Não se trata apenas de oferecer tratamento, mas de construir uma rede de prevenção e suporte contínuo. A falta de acesso a profissionais qualificados e a desvalorização do cuidado psicológico evidenciam a urgência de transformar o modo como enxergamos e tratamos o sofrimento psíquico na sociedade.
Que as decisões não sejam marcadas pela dor solitária, mas por caminhos de recomeço. Porque, por mais profundo que seja o abismo, ainda há como voltar. E o coração, mesmo machucado, pode continuar batendo - sentindo o sentimento de viver, por uma chance de transformação e acolhimento.
“Uma luta que, graças ao Senhor, tive grandes pessoas ao meu lado. Assim pude voltar com a Gabi verdadeira: menina feliz, tagarela, sonhadora e amorosa. Espero que todas as pessoas perdidas dentro de si mesmas consigam encontrar sua transformação e cura”, finaliza Gabi.

Dani você arrasa muito que texto bacana para ler, meus parabéns.
Muito bom!
Amei!
Admirável ver a força da Gabrielly em compartilhar sua história. A depressão é um lugar muito sozinho, mas ao mesmo tempo, barulhento. Buscar ajuda - um abraço que cala essas vozes - é um ato de sobrevivência. Reportagem emocionante. Parabéns, Gabrielly, por essa força inspiradora, e Dani, por esse texto maravilhoso.
Incrível, parabéns gaby!