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Nome social e não-binariedade: o direito de ser reconhecido além do gênero

Pessoas não-binárias buscam o uso do nome social como forma de afirmação de identidade e respeito; apesar dos avanços legais, desafios e preconceitos ainda marcam essa jornada por visibilidade e dignidade


Hibisco e a Violeta são as flores favoritas de Luci e Edén. Elas são utilizadas como máscaras para demonstrar as nuances da alma do casal. Amarelo, roxo, preto e branco são as cores que compõem a bandeira não-binária | Foto: Vinícius do Nascimento
Hibisco e a Violeta são as flores favoritas de Luci e Edén. Elas são utilizadas como máscaras para demonstrar as nuances da alma do casal. Amarelo, roxo, preto e branco são as cores que compõem a bandeira não-binária | Foto: Vinícius do Nascimento

Durante a gestação, é costume que os pais decidam os nomes que darão ao filho. Pintam cômodos da casa esperando sua chegada e bordam o nome escolhido em toalhas, bolsas e fronhas. Após o nascimento, com o sexo confirmado e os testes de detecção precoce de doenças congênitas concluídos, o próximo passo é a oficialização judicial por meio de uma certidão e, em menos de 24 horas, a criança ganha nacionalidade, nome, crença e um sexo para representá-la.


Por outro lado, enquanto o sexo é uma característica biológica (masculino e feminino), o gênero é uma construção social, estimulada pela cultura em que o indivíduo está inserido, influenciando a própria identificação com os sexos. Então, o que acontece quando o sexo atribuído no nascimento não condiz com o gênero com que a pessoa se identifica?


Esse questionamento é especialmente presente entre pessoas não-binárias, termo guarda-chuva que engloba indivíduos que não se identificam exclusivamente como homem ou mulher. Muitas vezes, essas pessoas optam pelo uso de nome social ou pela mudança oficial de nome, após reconhecerem em si a fluidez entre os gêneros.


Luci e Edén reconheceram-se como parte da sigla LGBTQIAPN+ desde a adolescência. Aos 13 anos, Edén se identificou como bissexual, mas sentia que havia algo a mais.


“Eu não conseguia me sentir incluída em grupos de meninas e nem em grupos de meninos”, afirma.

Na mesma época, Luci via, na feminilidade de alguns meninos e na masculinidade de algumas meninas de seu círculo social, algo que lhe chamava a atenção - mas não compreendia exatamente o que era. Entendia apenas o desconforto que sentia na própria pele.

“Aquilo só aumentava com o passar dos anos. Quando o meu pomo de Adão apareceu, quando minha barba começou a nascer, aquele sentimento de ser ‘outro’ também crescia. Eu via como os meus amigos LGBTs sofriam, e só de estar próximo deles eu já sofria. Por isso, escondia ser bi”, contou.

De acordo com dados do GGB (Grupo Gay da Bahia), 56% das mortes violentas entre pessoas LGBTQIAPN+ são de travestis e mulheres trans — a maioria ocorrida em espaços públicos, com requintes de crueldade, como disparos de arma de fogo, facadas e espancamentos. Pelo 15º ano consecutivo, o Brasil lidera o ranking mundial de assassinatos de pessoas trans e acumula um número crescente de denúncias de violações contra integrantes da sigla desde 2019, chegando a 3.400 em um único ano. Em 2023, 134 pessoas transexuais foram assassinadas - 96% delas eram mulheres negras e em situação de vulnerabilidade social, segundo dados da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais).


Aos 15 anos, Edén começou a questionar o próprio gênero ao reconhecer, assim como Luci, um desconforto que crescia mais a cada dia. “Naquela época, eu não sabia da existência do ‘não-binário’”, conta.


“Eu conhecia pessoas transgênero, mas tudo ainda muito dentro da lógica binária (homem trans/mulher trans). Então, comecei a achar que eu era um cara trans”, completa.

Munida de um novo nome e de roupas que expressavam essa nova identidade, Edén sentia-se em constante transformação para se encaixar no padrão masculino - até que, novamente, o desconforto retornou.


“Aí fiquei: ‘O que está acontecendo comigo?!’”, relembra Edén. “Daí, aos 17, eu descobri o que era ser não-binário - e, no começo, tive muito preconceito. Eu pensava: ‘Isso não existe! Como alguém pode não ser ‘nada’, ou ser ambos ao mesmo tempo, ou fluir entre eles?’”.


A não-binariedade enfrenta desafios tanto fora quanto dentro da própria comunidade LGBTQIAPN+. Apesar de, desde 2021, pessoas trans e não-binárias poderem mudar nome e gênero nos documentos sem necessidade de cirurgia ou laudo psiquiátrico - conforme decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) - a discriminação e a invisibilidade ainda persistem. Isso resulta na minimização da conscientização sobre a letra N da sigla, empurrando esses sujeitos para os limites do reconhecimento social.


A falta de preparo dos profissionais da saúde e o pouco apoio de parentes e amigos são exemplos dos obstáculos que pessoas não-binárias precisam enfrentar no caminho do autoconhecimento - fatores que podem retardar o processo de construção cognitiva e afetiva em relação ao próprio gênero.


“Fui pesquisando e lutando contra ‘isso’ que tinha dentro de mim. Tentando me encaixar tanto no masculino quanto no feminino. Mais ainda no feminino, pelo fato de eu ter nascido assim. E, junto a isso, só frustração, tristeza, disforia. Até que comecei a pesquisar de fato sobre não-binariedade e sobre quão ampla ela é”, finaliza Edén.

Ao mesmo tempo em que vivia um relacionamento com uma pessoa que não aceitava sua bissexualidade, Luci era constantemente atravessada por uma inquietação: será que a transexualidade era a peça que faltava na formação de sua identidade de gênero? Sem o apoio da então companheira, Luci voltou a se sentir como uma bússola quebrada, girando sem direção.


“Então, nos poucos momentos em que estava sozinho, eu caminhava com alguns amigos trans e comecei a falar sobre isso. Perguntei se eles achavam que eu era ‘um’ ou ‘outro’, se eu estava confuso ou se existia algo além disso. A maioria deles não sabia se existia algo no meio ou acima disso”.

Foi em uma caminhada à beira-mar que um dos amigos mencionou o “Rebis” - o produto final da alquimia, um ser que reúne qualidades masculinas e femininas em um único corpo, uma figura que representa a essência da não-binariedade.


“Cheguei da praia, comecei a pesquisar e percebi que era aquilo!”, exclama Luci, destacando: “Em nenhum momento eu me senti tão bem quisto quanto naquele instante em que entendi que aquele guarda-chuva me acolhia, me guardava”.
Almos e Nero, Tieflings que compõem a nova campanha de RPG idealizada por Luci. Com início ainda este mês, a partida acompanhará os personagens através de uma investigação acerca de um culto que busca a pureza do sangue | Foto: Edén
Almos e Nero, Tieflings que compõem a nova campanha de RPG idealizada por Luci. Com início ainda este mês, a partida acompanhará os personagens através de uma investigação acerca de um culto que busca a pureza do sangue | Foto: Edén

Assíduos jogadores de RPG (Role Playing Game), Luci e Edén incorporaram-se em Nero e Almos dentro do planeta Lumus como Tieflings - uma espécie humanoide com aparência infernal, muito astutos e carismáticos, muitas vezes apreciadores da solidão. É nesse universo fictício que ambos se sentem confortáveis para ser o que quiserem: um espaço onde podem se desvencilhar das normas sociais e serem livres para escolher a aparência, o modo de se comportar e de viver.


“O RPG fez com que todo o meu grupo, não só a mim, conseguisse explorar um pouco mais dos diferentes aspectos do nosso gênero e da nossa sexualidade”, relata Luci. “Inclusive, um dos meus jogadores se descobriu uma mulher trans durante uma das campanhas mestradas por mim.”


O jogo torna-se um lugar seguro, onde o jogador pode explorar inúmeras formas de ser ele mesmo, contar histórias e se divertir sendo quem é - junto de quem confia.


“É um local onde seus amigos estão lá. Então, se a barra pesar, você fala: ‘não dá, não dá’, e a gente para e conversa”, finaliza Luci.

Na semana anterior a esta entrevista, Edén havia emitido uma nova identidade e se sentiu frustrada ao perceber que poderia ter incluído o nome social no documento — mas não foi informada sobre essa possibilidade. “Apesar de eu ser muito fechada quanto ao meu gênero, na questão de expô-lo, era algo que eu ia escolher adicionar”, conta, com a voz embargada. “Aos pouquinhos eu vou pegando mais confiança para falar quem eu sou para as pessoas, e isso seria um bom começo”, desabafa.


Prestes a completar dez anos, o Decreto nº 8.727 instituiu o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero no âmbito da administração pública, impondo o respeito ao nome escolhido pelo cidadão, tanto em órgãos públicos quanto na sociedade em geral. No entanto, o uso do nome social ainda se mostra um “tabu” em muitos espaços.


“Se a opção está ali, por que não me mostraram essa opção? Independentemente se eu fosse colocar ou não”, questiona Edén.

Durante a entrevista, Luci e Edén fizeram um comparativo sobre o respeito aos nomes artísticos adotados por apresentadores e celebridades famosas - e como, para a sociedade, parece “mais fácil” aceitar essas escolhas quando vêm de pessoas heterossexuais. Nomes como Xuxa, Silvio Santos e Gretchen foram citados como exemplo.


“No geral, a não-binariedade não é levada a sério! Eu tenho muito medo de falar sobre o meu gênero para as pessoas, porque 90% delas vão rir da minha cara. Temos que escolher a dedo as pessoas para quem vamos contar isso ou então segurar muito bem o tranco ao ouvir um bando de grosserias”, desabafa Luci.

Luci e Edén completaram quatro anos de namoro no primeiro dia do mês do Orgulho LGBTQIAPN+. Estarem juntos todo esse tempo é, para ambos, um alívio: o alívio de poder viver ao lado de alguém que compreende suas nuances, escolhas e características. Alguém que se parece com ela, que passou pelas mesmas dificuldades e sentiu o mesmo desconforto na pele. Alguém que aceita e respeita tanto no mundo material quanto no fictício.


No fim, entre todas as pesquisas e jornadas de autoconhecimento para se compreenderem como pessoas não-binárias, o amor é a certeza que os une - e, sobrepondo o medo, faz de ambos exemplos de superação e combate à discriminação, dentro e fora da sigla.


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Produzido pelos acadêmicos do 5º período do curso de Jornalismo do Centro Universitário FAG, na disciplina de Webjornalismo, sob orientação do professor Alcemar Araújo.

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