Do silêncio do abandono à voz do afeto
- Kariny Camilo
- 3 de jun.
- 5 min de leitura
Programa de acolhimento a idosos e adultos com deficiência ressignifica vínculos e oferece um novo lugar para chamar de lar

Os anos passam, a idade chega e, com ela, as dificuldades aparecem, as necessidades aumentam e o apoio diminui. Eles ainda vivem, mas em locais silenciosos e vazios, porque foram deixados.
Em algumas circunstâncias da vida, todos nós precisamos de um cuidado especial - seja para o corpo, seja para a alma. Ninguém vive sozinho. Tradicionalmente, a tarefa é de quem está mais perto: a família. Contudo, quando nos viram as costas, é preciso uma intervenção exterior.
O município de Cascavel teve que encontrar corações que aceitassem acolher 40 pessoas - idosos ou adultos com deficiência - que sofreram alguma violência ou estavam em situação de abandono. Essa conta nem deveria existir, porque a situação é desumana. Mas, de qualquer forma, os resultados não fecham, porque apenas 30 famílias aceitaram a missão.
É discrepante a diferença entre o número de pessoas que se interessam em acolher um idoso ou adulto e o número de pessoas que querem adotar uma criança. No município, o número sobe de 30 para 120.
O programa “Cascavel Caridoso” existe desde 2020 e, segundo a responsável pelo setor de alta complexidade da assistência social, Mary Weber, o acolhimento é feito somente quando todas as possibilidades já foram esgotadas. “São pessoas que estavam em situação de abandono, que foram violadas, situações graves, que a gente precisou retirar do ambiente da família”, explicou com calma.
Marilei Mattei conheceu a ação pela televisão, viu que estavam buscando famílias acolhedoras e não hesitou em entrar em contato com o número divulgado. Quantas pessoas agiriam assim? Quantos corações são capazes de aceitar essa missão?
No caso de Marilei, tudo foi muito rápido. Quando decidiu acolher e cuidar de alguém, se cadastrou, fez um curso preparatório e logo descobriu que ia receber não só uma, mas duas pessoas.
“Você tem que ter o dom pra cuidar”

“Não adianta você pegar um acolhido se você não tem o dom pra cuidar, porque eles querem atenção, carinho, amor, uma palavra que eles não tinham. Tem muitos por aí que são trocados de família porque a pessoa não quer cuidar e só quer pegar o dinheiro”, ressaltou Marilei Mattei. As famílias recebem uma bolsa-auxílio, de acordo com as necessidades de cada acolhido. O recurso é necessário, porque é impossível trabalhar fora quando você precisa cuidar de alguém. Mas muitas pessoas só querem tirar proveito disso.
Marilei cuidou do filho, que também é uma pessoa com deficiência, até quando ele se casou. “Quando parei de cuidar dele, falei pro meu marido: ‘vou pegar umas crianças para cuidar em casa’. Aí eu vi que tinha o projeto e decidi acolher uma pessoa”.
Para ser um acolhedor, é preciso passar por muitas etapas. Ela contou que se inscreveu, passou pela Justiça, passou por vistorias e treinamentos - e agora já faz cerca de quatro anos que está com Agostinho Ciwiz e Rafael Fagundes da Silva. Apesar de toda a burocracia, as etapas não tornam o processo complicado. Até porque, sem dúvidas, o ato de amor e doação pode ser recompensador.
“Ele foi abandonado pela família em casa”

Agostinho tem olhos que não veem, mas, aos 56 anos, carrega um largo sorriso de quem pode imaginar o mundo ao seu redor.
Observando o homem, Marilei contava um pouco de sua história, como uma mãe que compartilha as vivências do filho. “Ele foi abandonado pela família em casa. Quando encontraram ele, fazia dois meses que estava sozinho. Aí as vizinhas chamaram a polícia e o recolheram”.
Então, Agostinho foi para um abrigo, onde ficou por sete anos, até ser acolhido por Marilei. “Ele toma banho sozinho, vai ao banheiro sozinho, come sozinho, mas é dependente 24 horas por dia, porque sempre tem que ter alguém auxiliando”, contou.
Agostinho é uma pessoa totalmente cega e, mesmo que não conseguiria viver sem nenhum apoio, suas limitações não impedem que realize várias tarefas. Durante a semana, ele vai para a escola pela manhã, geralmente até o meio-dia e, às terças-feiras, fica o dia todo.
“Conta como você escreve lá na máquina, Agostinho”.
Ele não é de muitas palavras, mas o sorriso surgiu novamente e ele respondeu:
“Em braile”.
O rádio pendurado no pescoço já o acompanha como se fosse um de seus órgãos.
“E esse rádio? Você gosta de rádio?”, perguntei, curiosa.
Entre sorrisos, balançava a cabeça dizendo que “sim”. Segundo Marilei, o companheiro está com ele durante todas as horas do dia.
Na tarde em que conversávamos, o papo foi brevemente interrompido por um barulho de helicóptero, que ecoava em nossos ouvidos.
“O que está passando, Agostinho?”
Com o rosto alegre e com convicção - porque a sua dificuldade não o torna incapaz de entender as coisas - ele disse, sem demora: “a polícia!”.
“Ninguém queria ficar com ele, por causa do problema”

Hoje, com 47 anos, Rafael também carrega um sorriso fácil. Ele tem um distúrbio cerebral e já passou por muitas transformações.
“Desde que ele chegou aqui, nunca mais aconteceu, mas ele era agressivo, batia, teve 11 internações. Aí, acho que a mãe dele não conseguiu mais e levou ele para o abrigo”.
Assim como Agostinho, Rafael vai à escola todas as manhãs, mas, às segundas e quartas, fica o dia todo. Aprende a ler, escrever, somar e subtrair. Vive normalmente e ainda ajuda Marilei em casa. “O Rafael me ajuda bastante. Leva o lixo lá na frente pra mim, passa aspirador na casa, dá água e comida para os cachorros e gatos. Ele me ajuda muito: arruma a mesa, tira a mesa, ajuda o Agostinho…”.
Mas, apesar de tudo isso, ele também foi abandonado um dia. O motivo: suas dificuldades. “Eles são em 20 irmãos. Tem cinco falecidos e 15 vivos. Os outros irmãos dele, ninguém queria ficar com ele, por causa do problema”.
Agora, o homem já faz parte da família de Marilei e não pensa duas vezes para responder “sim” quando é questionado sobre gostar de morar lá.
Rafael estava com 49 quilos quando chegou à casa da mulher. “Ele estava com início de desnutrição profunda. Eu levei no médico, e ele disse que ia ter que tomar sangue, se não melhorasse. Ele começou a fazer tratamento, comecei a dar comida, vitamina… Hoje está com 69 quilos. Engordou 20 quilos”. Agora, Rafael é uma nova pessoa.
“Aqui só o bem entra, só o bem fica”

Às margens da porta da casa, um lembrete: “Aqui só o bem entra, só o bem fica”. A plaquinha rosa, decorada com corações vermelhos, não poderia estar em um lugar melhor. Afinal, estamos falando de um espaço que se tornou, além de tudo, um lugar de aconchego, amor e caridade.
O trabalho do Cascavel Caridoso é constante, porque novos casos surgem semanalmente.
Você também pode ser o anjo na vida de alguém.
Para os interessados em se tornar famílias acolhedoras, é possível entrar em contato pelos telefones (45) 99133-3396 e (45) 3392-6364.
Texto lindo, ka! Parabéns ❤️
Texto maravilhoso, Kariny!
Parabéns pelo texto.
Que projeto legal, Kariny!
Kariny, me emocionei. Que história linda. Uma verdadeira inspiração. Quanto amor tem no coração da Marilei e desta família. Uma lição de vida 🥰