A estética das “casas clínicas” e o dilema da arquitetura contemporânea
- Mikaella de Moura
- 4 de jun.
- 7 min de leitura
Atualizado: há 6 dias
O minimalismo, os debates sobre a perda da riqueza dos detalhes nas construções e o que isso diz da sociedade

O termo “casas clínicas” tem invadido o vocabulário dos amantes da arquitetura clássica - conhecida por seus ornamentos, colunas e frontões. O estilo minimalista da arquitetura contemporânea - com cores neutras e linhas retas combinadas a traços distorcidos - tem gerado debates nas redes sociais, pois muitos acreditam se tratar de casas frias, impessoais e com cara de consultórios/clínicas.
Outros termos que vêm sendo utilizados são “casa com cara de casa” e “casa de vó”, defendidos pelos opositores da arquitetura contemporânea como casas aconchegantes, que fogem do minimalismo e apostam em muitas cores, texturas e ambientes decorados com porta-retratos, quadros, plantas e móveis herdados com valor sentimental.

Nas redes sociais, as opiniões são diversas. Em uma enquete rápida, realizada para esta reportagem, com 47 participantes, 68% preferem a arquitetura clássica e 32% a arquitetura contemporânea. Em um vídeo publicado no Instagram - com mais de duas milhões de visualizações - a arquiteta Verí Lourencetti, que defende a arquitetura clássica e perene, pede desculpas aos arquitetos desconstruídos e diz que prefere a simplicidade da beleza, a inteligência da tradição, a casa aconchegante, a arte de verdade e os detalhes. Nos comentários, internautas deixam suas opiniões: “as casas de hoje em dia são horríveis”; “minimalismo é vazio, igual à nossa sociedade”; “amo uma casa estilo antiga”; “simplicidade é modernismo”; “podem me xingar à vontade, mas eu gosto de morar em um quadrado branco e cinza. Me sinto mais confortável sem tantas informações”.
A arquiteta Inaiama Aires, em um vídeo publicado na sua conta do Instagram, diz que já viu vários profissionais falando sobre o quão ruim é essa arquitetura com “cara de clínica” e que também já ouviu muitas pessoas dizerem que acham bonito “casa com cara de casa”. Porém, ela defende que uma casa tem que ser a cara de quem mora nela. Ainda no vídeo, ela diz que a arquitetura é um resultado da sua época, então não adianta dizer que não gosta do que está na moda, porque sempre estaremos na moda, pois arquitetura é moda e indústria. “Mas o que eu, como arquiteta, indico, é você ter algo que você se sinta bem. Que você ache bonito”, complementou Inaiama, que deixou uma enquete na legenda do vídeo, na qual, de 69 respostas, 90% dizem preferir casas mais rústicas e 10% dizem gostar de casas mais modernas, com muito vidro.
Esses debates de preferência de estilos arquitetônicos não ficam apenas nas redes sociais. A aluna Méri Sassi de Carvalho, graduanda do quinto período de Arquitetura e Urbanismo no Centro Universitário de Cascavel (Univel), compartilhou sua experiência em sala de aula e diz que essa estética “casas clínicas” é amplamente abordada e, de certa maneira, julgada, por não trazer uma sensação de conforto. “Nós somos muito incentivados a fazer detalhamentos diferentes [...] até para não ficar uma obra tão fria”. Ela diz que tem havido uma crescente de casas no estilo farmhouse - que significa “casa de fazenda” - e casas com cara de vó e, para ela, isso é ótimo. “A gente consegue imprimir melhor a personalidade de cada um e consegue também mostrar que a arquitetura tem muitas vertentes, tem muitas possibilidades, que nós conseguimos trabalhar com muita coisa, muito material diferente. A madeira tem voltado muito, é um material que, por si só, traz um aconchego, um material agradável também aos olhos. E é isso que a gente é incentivado a buscar: esse conforto. Essa sensação de que mora gente aqui. Que não é uma clínica”, explicou a graduanda, que diz sentir uma pressão do mercado em seguir essa tendência das “casas clínicas”, por serem mais fáceis de projetar, de convencer o cliente a embarcar na ideia, de encontrar acabamentos e representar tudo graficamente.
A arquitetura no mercado e na sociedade
Seguindo essa linha de pensamento, sobre o que o mercado pede e o que vende mais, a arquiteta Esther Cardoso Merlos explica que os investidores, construtores e as incorporadoras buscam por assertividade e segurança na hora de investir. “O que tem maior aceitação no mercado é o que eles têm tendência a investir. Se for investir na exceção, acaba tendo maior risco. Ao buscar um estilo mais ousado, talvez a possibilidade de venda seja menor”, esclareceu. Para ela, a tendência das “casas clínicas” ganhou força com a volta do minimalismo - que surgiu na década de 60 - em meados de 2010. “Essa tendência voltou, não só refletindo na arquitetura, na moda, como também na forma de vida de muitas pessoas [...]. E a arquitetura reflete diretamente o que está acontecendo na cultura”, pontuou Esther.

O professor Emerson Santos, formado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Pará (UFPA), especialista em Arquitetura de Interiores, Ambientação e Design de Mobiliário pela Universidade Paranaense (Unipar) e mestre em Educação pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), diz que falar sobre sociedade e arquitetura é falar justamente de momentos e sobre o espírito de uma época. Ele cita a Idade Média, com uma arquitetura verticalizada, voltada para o céu, para Deus. No Renascimento, quando o homem se olha e se vê pela razão das coisas, deixando o teocentrismo, as pessoas começam a ver a arte de um outro ângulo e não apenas da igreja e da criação. No século XX, após a Primeira Guerra Mundial, a arquitetura vai para um entendimento extremamente racionalista, despojando-se dos ornamentos. Emerson também aponta o pós-modernismo, com sua estética maximalista, que marcou a década de 80, com muitas cores, formas e elementos. O minimalismo, então, retorna trazendo uma resposta ao excesso e à efervescência do pós-modernismo, propondo uma estética mais limpa.
“A arquitetura, ao longo do tempo, vai refletindo o que o homem pensa, de que forma pensa, a sua racionalidade, a sua tecnologia”, afirma o professor.
A globalização, segundo Emerson, ao promover a homogeneização cultural, subestima o modo de construir das culturas locais.
“Em um passe de mágica, a gente consegue observar tudo que está sendo construído, em qualquer lugar do mundo, e isso se transforma em referências para aqueles que estão projetando e construindo. Então, a globalização, ao mesmo ponto que é positiva, por agregar relacionamentos [...], pode degradar o que a gente entende sobre cultura local”, refletiu.
Assim como Esther, o arquiteto e professor também analisou a arquitetura perante o setor imobiliário e acredita que as pessoas estão construindo não pensando apenas na vivência, mas na venda. “É a cultura de massa. O bonito, na realidade, é a tendência que é externada, como em uma Casa Cor ou em uma feira de Milão. E isso vira regra, tanto para os arquitetos, como para os clientes”, explica Emerson, complementando que isso são ciclos e que logo vem uma nova tendência, o que coloca a arquitetura em uma estrutura de consumo, mesmo sabendo que ela é arte. “A gente não vê mais criatividade. Todas as casas são muito parecidas, muito iguais”, finalizou.
Depois de viajar por diversos países, Wellington Freire Franzão — diretor criativo e artista de CGI na Elephant Skin, startup do mercado imobiliário com sede em Miami — compartilhou sua visão sobre as novas construções e os rumos da arquitetura. Vencedor do CG Awards em 2023 e do Architecture Hunter Awards (AHA) em 2024, Franzão acredita que, ao simplificarmos demais os projetos, acabamos perdendo a identidade e a alma dos espaços.
“Em lugares que eu visitei, como Espanha, Portugal e até mesmo Áustria, percebi um contraste muito interessante. Apesar de serem países com uma arquitetura tradicional super presente e bem preservada, especialmente nos centros históricos, muitos projetos novos seguem uma linha mais minimalista, com aquele visual limpo, funcional e até meio impessoal - o famoso ‘com cara de clínica’. É tudo muito bem resolvido visualmente, mas às vezes parece que falta um pouco de alma. E, quando você anda por esses lugares e vê essas construções modernas lado a lado com a arquitetura antiga, esse contraste fica ainda mais evidente”, analisou.

Para Franzão, a simplicidade extrema da estética minimalista pode levar a uma sensação de monotonia ou falta de personalidade no ambiente, podendo não se adaptar tão bem a contextos familiares, onde a diversidade de cores, texturas e objetos pessoais contribui para a sensação de lar. Ele também pontua que a manutenção de ambientes minimalistas pode ser desafiadora, exigindo cuidados constantes para manter a estética proposta.
Entre memórias e tendências
Esther C. Merlos acompanha os debates sobre a cultura das “casas clínicas” com entusiasmo. “Eu acho incrível, porque é a partir dos debates que nascem novas ideias, e eu, estando na área, sendo arquiteta, fico muito feliz quando recebo um cliente que não tem medo de ousar”. Ela também conta que, na feira de arquitetura e design de Milão de 2025, estavam presentes os materiais artesanais, curvas, assimetrias, formas fluídas e vidros esculturais que víamos nas casas de vó. “Se está refletido lá, logo chega aqui, no Brasil, e a gente vai conseguir voltar com essas memórias afetivas, com essa casa com cara de casa, que aquece o coração”, explicou a arquiteta, que diz estar animada com a volta dessa estética e na expectativa de como as pessoas vão reagir ao formato.
Os debates e discussões em torno da tendência “casas clínicas”, que permeiam a arquitetura contemporânea, vão continuar existindo e, independentemente da estética, sempre que um novo ciclo se iniciar, novas opiniões vão surgir e novos diálogos serão necessários.
A arquitetura, afinal, é arte, é expressão de um povo, de uma cultura, de emoções e vivências. Ela pode ser genuína ou híbrida. O que importa, no fim, é que ela, assim como o arquiteto Paulo Mendes da Rocha disse, não seja apenas vista, mas vivida.
Parabéns pelo texto!
Adorei o tema!
Parabéns pelo texto Mikaella 👏🏻👏🏻
E você, o que prefere? "Casas de vó" ou "casas clínicas"? 😄
eu amo um estilo mais casa de vó! ótimo texto!