Vale Tudo por audiência: a nova visão sobre uma das maiores novelas do Brasil
- Evelyn Veit
- 11 de jun.
- 8 min de leitura
Atualizado: 17 de jun.
Como histórias profundas podem se transformar em contos rasos e vazios para a sociedade

As novelas são uma marca única e o principal produto audiovisual do Brasil, mas o gênero vem enfrentando dificuldades para se manter presente nas casas dos brasileiros. Com a chegada dos streamings, o folhetim tem recorrido a inúmeras ferramentas para reconquistar ou, ao menos, manter o público.
Entre essas estratégias, a Rede Globo de Comunicação, que lidera o formato há anos, tem apostado nos remakes (uma nova versão de uma obra já existente, feita com atualizações na história, mas mantendo a ideia original). Nos enredos reescritos estão Pantanal, Renascer, Elas por Elas e um dos maiores sucessos de crítica e audiência: Vale Tudo.
A telenovela brasileira foi produzida pela emissora carioca em 1988, escrita por Gilberto Braga, juntamente com Leonor Bassères e Aguinaldo Silva. O folhetim teve média de 61 pontos de audiência na época.
A história discute se vale a pena ser honesto no Brasil, tendo como pano de fundo a relação entre mãe e filha - mulheres com visões diferentes sobre como vencer na vida. Maria de Fátima, com cerca de 20 anos, é inescrupulosa e está disposta a tudo para ter uma vida de luxo e fama. Já Raquel Accioli sempre foi uma mulher honesta e íntegra, com muitas esperanças no mundo.
O enredo nasceu após o autor presenciar uma conversa familiar, na qual se discutia se ainda valia a pena ser honesto em um país marcado pela corrupção e desigualdade. Dessa provocação nasceu o texto, considerado até hoje o mais atual de todos e o que melhor representa o brasileiro.
Segundo a estudante de História Júlia Hassum, o enredo de Vale Tudo vai muito além do conflito familiar. Em sua pesquisa, realizada na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), observou que o autor pretendia refletir sobre o contexto político do ano em que a obra foi produzida, como a promulgação da Constituição de 1988 e a consolidação da Nova República.
“O Brasil tinha acabado de passar por 21 anos de ditadura militar, uma tentativa de uma eleição direta, que não foi bem-sucedida e, depois, a eleição direta também não deu certo porque o presidente eleito, Tancredo Neves, morreu… então, o Brasil demorou muito para ter um presidente civil”, explica Júlia.
Todos esses movimentos políticos e a cultura abalada com a repressão impulsionaram Gilberto Braga a discutir valores morais e políticos que os brasileiros vislumbravam com a nova Constituição.
No entanto, a emissora decidiu fazer uma releitura da história em 2025. Agora escrita por Manuela Dias, a nova versão promete mudanças nas estruturas, enredo e comportamento dos personagens. Mas o questionamento dos telespectadores permanece: por que fazer um remake se a história original está disponível no streaming?
Raquel Accioli e Maria de Fátima, mãe e filha que representam o embate entre honestidade e ambição, em Vale Tudo de 2025 e 1988 | Foto: Reprodução/Redes sociais da TV Globo
“Mania de grandeza? Não, não!”
Algumas mudanças no remake de Vale Tudo foram bem recebidas, como a reintrodução do casal lésbico, censurado na primeira versão - que resultou na morte de uma das personagens - e que agora ganha mais significação no enredo. Já outras alterações causaram insatisfação, como o novo desfecho do assassinato da grande vilã da história, que a autora disse em entrevistas que pretende mudar. Outro ponto criticado desde a divulgação da novela foi o elenco. O desafio de fazer uma releitura vai além do roteiro; envolve como os novos atores lidarão com comparações e com as interpretações anteriores.
A versão original de 1988 contou com grandes nomes, como Regina Duarte, Antônio Fagundes, Beatriz Segall, Glória Pires e Renata Sorrah. Segundo o ator João Sales, a atuação depende de vários fatores, desde o empenho do profissional até a qualidade do texto.
“Dentro do roteiro, a gente encontra os nossos espaços de criação. Nós somos atores, o ator atua, ele age, ele é uma pessoa da ação. Se eu tenho um roteiro que é tão superficial, que o que está escrito não se converte em ação”, disse.
Vanessa Cutrim, criadora do canal Melodramáticos, ao lado de Rafael Trinta, afirma que os remakes de folhetins são uma grande responsabilidade. Com quase 30 mil inscritos no YouTube, o canal aborda novelas brasileiras de forma crítica e bem-humorada. Vanessa acredita que clássicos devem, sim, ser adaptados.
“Primeiro porque o original sempre vai estar lá intacto para quem quiser e puder revisitar; segundo, porque acredito que adaptações e remakes ajudam mais pessoas a conhecerem a obra original; e terceiro: por que não? Se a gente gosta de um clássico ou tem interesse nele, por que não dar uma chance para uma nova interpretação dele?”.
Ela destaca que criar histórias já é difícil, e recriá-las, ainda mais. Por isso, admira quem aceita esse desafio.
“Acredito que os autores e diretores precisam entender a essência da obra e manter aquilo com respeito, mas atualizando certos discursos e posicionamentos para o mundo atual”.
Mas talvez o mais necessário não tenha sido realizado: mostrar a verdadeira cara do Brasil. Segundo Júlia Hassum, a nova Vale Tudo não reflete como as mudanças históricas do país impactaram o pensamento e a moral da população.
“A releitura que está sendo proposta pela Manuela Dias, e por toda a equipe dela, não é interessante para o Brasil nem para a versão original, porque ela tirou o que a novela tem de mais importante, que é o debate sobre ética, honestidade e moral (…) Na releitura, não há como a gente pensar e questionar nada, porque ela é vazia”, explica a estudante.
Essas temáticas estavam presentes em todos os núcleos da novela original - desde um furto de papel higiênico no primeiro capítulo, cometido pela personagem Aldeide (Lília Cabral), que justificava o ato pelo baixo salário, até a fuga de Marco Aurélio (Reginaldo Faria), vice-presidente de uma empresa aérea, com dinheiro desviado. Enquanto ele escapava impune, os “peixes pequenos” eram presos - uma crítica clara à impunidade nas altas esferas.
Vanessa comenta que um dos debates que voltou a ser colocado na nova novela envolve o encontro de uma mala com dinheiro, e é um exemplo de que as discussões sobre honestidade ainda são fundamentais. Na história, os protagonistas, que passam por problemas financeiros, encontram uma mala cheia de dólares desviados pelo vice-presidente da empresa e enfrentam o dilema entre devolver para o dono, que não é dono, ou ficar com ela, quase como o velho ditado: “ladrão que rouba ladrão tem 100 anos de perdão”.
“Olha, a trama da mala com dólares gerou comoção na primeira versão e eu senti o mesmo nesta, continuei adorando! A pergunta ‘O que você faria se encontrasse 1 milhão de dólares debaixo da cama?’ ainda gera muita reflexão. Porém, de fato, sinto que a original era mais transformadora, corajosa, profunda, e o debate ético pincelava todas as tramas. No remake, para mim, as coisas ainda estão sendo tratadas de forma superficial, e tudo muito ágil, o que dificulta a reflexão e identificação com os personagens”, comenta Vanessa.
Para a estudante de História, a autora poderia aproveitar para trazer tudo o que mudou na sociedade nos últimos anos, criando um debate onde a população repensasse os valores, a moral e a ética no século XXI. Com a Constituição já estabilizada, dois presidentes civis que sofreram impeachment, a passagem de uma esquerda em ascensão na América Latina, a atual ascensão da extrema-direita e a internet, que mudou totalmente as relações sociais e interações.
Diversos conteúdos que podem e devem ser colocados em histórias como as das novelas, movimentando o pensamento e a compreensão das pessoas de uma maneira sutil e única.
“Eu enxergo a novela como uma ferramenta muito importante para refletir e discutir, não só questões sociais, mas tudo. A novela é literalmente a minha fonte no meu objeto de pesquisa (…) ela é uma fonte para a gente questionar se ela retrata, ou não, aquele período e o que ela retrata dele”, completou a estudante.
Para ela, nenhum outro gênero do audiovisual é tão massificado, passa na televisão aberta, alcança tantas pessoas e entra na casa de diversos brasileiros.
“A novela é democrática, é praticamente de domínio público… As pessoas, com um mínimo de atenção à história, podem refletir sobre muitas coisas”, finaliza Júlia.
Julia Hassum apresentou, no Centro de Repressão e Memória da Argentina (ESMA), os principais aspectos de sua pesquisa sobre a novela Vale Tudo | Foto: Arquivo pessoal
“Eu vou ficar. E eu vou lutar. E eu vou vencer”.
Na sua pesquisa, Júlia mostra como a novela impactou até mesmo a Constituição. Um exemplo é o discurso da personagem Lucimar, faxineira, ao afirmar que, graças à nova Constituição, teria mais proteção legal.
“Essa fala da Lucimar é uma ferramenta de discussão, porque ela diz isso e as pessoas em casa ouvem (…) Um movimento social dos trabalhadores pode se organizar, porque a Constituinte ouviu muitos movimentos sociais”, argumenta Júlia Hassum.
Para Vanessa, mesmo com as distrações do mundo atual, os folhetins ainda podem formar opinião e consciência social
“Claro que com outros parâmetros, por motivos óbvios, a audiência não é a mesma de 20, 30, 40 anos atrás… o impacto não é mais centralizado como quando a novela era praticamente o único grande palco de debate nacional, quase não existia concorrência. Mas temos um bom exemplo de formação de consciência social no próprio remake de Vale Tudo, como a trama da Lucimar e a busca por direitos da pensão alimentícia”, complementou.
A personagem, interpretada por Ingrid Gaigher, denuncia a falta de responsabilidade do pai de seu filho ao não cumprir com suas obrigações financeiras. Essa atitude gerou repercussão nas redes sociais e levou muitas mulheres a buscar informações sobre seus direitos. Após a exibição da cena, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro registrou um aumento expressivo no número de acessos ao seu aplicativo, com mais de 270 mil mulheres buscando informações sobre pensão alimentícia em apenas uma hora.
As tramas atuais seguem se reinventando, mas o desafio é fazê-lo sem perder sua essência. Para João Sales, o principal problema é que as novelas estão sendo uma plataforma de mídia e não de debate e reflexão.
“Eles fazem o produto, que é a novela, e eles fazem outros programas com prêmios para premiar o próprio produto que eles mesmos produziram (…) sem perceber esse mecanismo, a gente vai dizer ‘nossa, olha, ela foi premiada, nossa, olha, não sei o quê’. E assim a gente vai engolindo”, comenta o ator.
“A novela tem o poder de transformação, então, mais do que discutir, ela deve transformar”, explica Júlia Hassum.
Mas o questionamento que surge é como a novela está realizando essa tarefa, assim como um dia Vale Tudo fez. Vanessa aponta que
“O exato mesmo tipo de reflexão, talvez não - pelo menos não com o mesmo impacto -, mas já houve outras novelas, até mesmo do próprio autor Gilberto Braga, que geraram debate sobre corrupção e ascensão social, como Paraíso Tropical, de 2007. E, claro, outras centenas de novelas já retrataram temáticas sociais (…) Um exemplo deste ano, que acho muito bom, foi De Volta por Cima, que retratou de maneira super responsável a violência contra a mulher, com a personagem da Roxelle”.
Boas histórias continuam existindo. A sociedade é a fonte delas. Olhar ao redor e transformar esse olhar em ficção - ou quase realidade - é o que torna a novela uma ferramenta poderosa, que ultrapassa o entretenimento e se torna história. Embora a palavra “estória” costume referir-se ao que é fictício, o que se inventa, Vale Tudo transcende a ficção com uma trama tão verdadeira e impactante que se consagra como uma história inesquecível e transformadora.
Que interessante e bacana demais este texto parabéns.
Que diva!
Amiga você arrasa demais! Parabéns!
👏🏻👏🏻
Parabéns!! ❤️