Sonhos de uma geração
- Hallis Novak
- 20 de jun.
- 7 min de leitura
Atualizado: 20 de jun.
Adultos que não conseguiram concluir os estudos na infância demonstram que não há idade correta para ir em busca de conhecimento

Você já se perguntou qual é o sentido da vida? Para Augusto Cury, viver sem sonhar é como se a vida fosse uma manhã sem orvalho, um céu sem estrelas, um oceano sem ondas. Uma vida sem aventuras é, para ele, uma vida sem sentido. Uma definição bela e profunda - mas até que ponto você está disposto a se doar para que um sonho se torne realidade? Anos de vida, família e relacionamentos estão em jogo. Princípios são inegociáveis ou existe um meio-termo entre escolhas e renúncias?
Maria José de Oliveira Santos tinha um sonho: ser professora. Mas, como todo sonho que se torna objetivo, era preciso planejamento, visão de futuro e entrega - no caso de Maria, entrega total ao universo da educação. Ela morou até os 18 anos no interior de Cascavel, no Paraná, em uma fazenda onde o pai trabalhava como lavrador. Até os 14 anos, não sabia ler nem escrever, assim como seus cinco irmãos. Foi apenas no ano em que completou 14 anos que a sede da fazenda foi contemplada com uma escola municipal, coordenada pela Secretaria Municipal de Educação da cidade de Cafelândia, a 52 km de Cascavel.
Seu primeiro contato com a sala de aula aconteceu em fevereiro de 1989, e é descrito por ela como a realização de um anseio coletivo, compartilhado por todas as crianças e adolescentes que viviam nos alqueires vizinhos. A escola era simples, feita de madeira - assim como as mesas e cadeiras, projetadas para acomodar duas crianças cada. O sistema de ensino, muito diferente do atual, era multisseriado: estudantes de diferentes idades e níveis escolares compartilhavam o mesmo espaço, enquanto professores sem formação adequada se esforçavam para transmitir o básico.
Quem desejasse continuar os estudos a partir da quinta série precisava buscar escolas nos centros urbanos. Foi o que Maria José fez ao completar 18 anos. Mudou-se para Cafelândia e passou a frequentar o Colégio Estadual Santos Dumont.
“Era constrangedor ter 18 anos e estudar numa turma com alunos de 12. Foi um desafio que precisei enfrentar”, relembra.
Apesar do sabor alegre da realização de um sonho, o caminho ainda reservaria o amargo das renúncias.
“Mãe, eu estou com fome”.
“Mãe, me ajuda no dever de casa”.
“Mãe, o que tem para o almoço?”.
Do tempo de uma mãe, nem o relógio dá conta. Por mais ágil que ela seja, o dia ainda tem apenas vinte e quatro horas. Conciliar os estudos com a dedicação aos filhos - que vieram ao longo dos anos - se tornou, aos poucos, insustentável. Quando Maria estava no segundo ano do Ensino Médio, a solução foi interromper os estudos e priorizar a família.
Realidade alarmante
No Brasil, atualmente, nove milhões de jovens entre 14 e 29 anos estão fora da escola. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os índices se referem a jovens que abandonaram os estudos no ensino médio ou ainda na segunda etapa do ensino fundamental. Trabalhar para ajudar na renda familiar, cuidar dos afazeres domésticos ou enfrentar uma gravidez estão entre os motivos mais citados pelos entrevistados da pesquisa. Essas justificativas foram mencionadas por 53,4% dos homens e 25,5% das mulheres que deixaram de estudar - assim como fez Maria José, aos 24 anos.
As histórias se cruzam, cada qual com seu drama particular, mas escolhas distintas adiaram sonhos semelhantes. A 210 km de Cafelândia, na cidade de Cantagalo, Lucimara Palhano Kauffmann, hoje com 50 anos, viveu trajetória semelhante à de Maria. Morou parte da infância em uma fazenda com a família e frequentou a escola até a quarta série, quando precisou interromper os estudos.
“Por questões de mudança e, também, porque na época não havia obrigatoriedade de frequentar a escola, acabei não concluindo nem o ensino fundamental no período correto”, conta.
Anos depois, Lucimara se mudou com a família para a área urbana, mas não retornou imediatamente à escola. A rotina intensa e o cansaço dificultavam a retomada dos estudos. Mesmo assim, ela sempre soube que conquistar o sonhado diploma exigiria dedicação. Com o objetivo já idealizado, materiais em mãos e uma determinação acumulada por anos, ela voltou a estudar, concluiu o Ensino Fundamental e Médio - e deu o próximo passo: a universidade.
Formou-se no curso de Letras/Espanhol em 2010 e, desde então, atua como professora. Ser aluna e retornar como docente transformou completamente sua abordagem pedagógica.
“Ter sido aluna do CEEBJA [Centro Estadual de Educação Básica para Jovens e Adultos] e agora lecionar no mesmo local onde concluí meus estudos básicos muda totalmente a forma como dou minhas aulas. Ter vivido os mesmos desafios enfrentados pelos meus alunos me dá empatia profunda e compreensão real das dificuldades, motivações e inseguranças que muitos deles trazem para a sala de aula”, explica.
A preocupação com a educação de jovens e adultos (EJA) remonta ao período da colonização, quando os portugueses ensinavam sua língua e costumes aos povos indígenas. A modalidade ganhou força na década de 1930, com as transformações socioeconômicas impulsionadas pela industrialização e o êxodo rural. Em 1964, foi criado o plano Paulo Freire, que propunha erradicar o analfabetismo no país. No entanto, o projeto foi abolido antes de sua implementação pelo regime militar, que o considerava uma ameaça à ordem. A EJA só foi reconhecida oficialmente como modalidade de ensino nos anos 1990, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB).
Apesar dos avanços legais, frequentar a escola não elimina, por si só, os desafios enfrentados por alunos adultos. “O principal desafio está relacionado à rotina e à experiência dos estudantes. Em uma mesma turma, temos jovens e adultos que deixaram a escola há poucos anos e outros que estão fora do ambiente escolar há décadas. Isso exige uma abordagem flexível, respeitosa e adaptada, pois cada aluno possui um ritmo próprio de aprendizagem, além de diferentes níveis de escolaridade e habilidades”, detalha a professora Lucimara.
Paulo Freire, reconhecido como o pai da educação de jovens e adultos, escreveu em Pedagogia do Oprimido que “ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo”. Em outras palavras, o saber nasce do encontro, da troca e da escuta. Uma premissa que Lucimara leva a sério.
“Procuro trabalhar com métodos inclusivos, práticos e conectados à vivência deles. Envolvo os alunos em debates, atividades concretas e resolução de problemas. Sempre que possível, incentivo o trabalho em grupo ou em duplas — isso fortalece a troca de experiências e o apoio mútuo. Também incorporo o uso da tecnologia, como plataformas digitais. Depois que aprendem, é visível o brilho no olhar”, relata.
Durante suas aulas, os estudantes experimentam o protagonismo. “Utilizo com frequência a aprendizagem autodirigida. Eles realizam pesquisas individuais, têm autonomia para gerenciar o próprio ritmo de estudo - especialmente, nos conteúdos mais difíceis. Também faço uso constante do feedback positivo e construtivo. Muitos dos alunos do CEEBJA trazem traumas e inseguranças com o ambiente escolar. Por isso, o retorno que ofereço precisa motivar, acolher e impulsionar”, enfatiza.

O olhar de dentro
A Educação de Jovens e Adultos (EJA) tem o poder de preparar seus alunos para um futuro promissor, reabrindo-lhes as portas do conhecimento que, por circunstâncias da vida, foram fechadas. Em Cascavel, o CEEBJA Professora Joaquina Mattos Branco recebe estudantes para cursar o ensino fundamental II e o ensino médio - alunos que veem na instituição a chance de um recomeço, como explica o diretor Jacir da Silva Dias.
“Qual é o aluno que vem para nós: é o nota 10, aquele que sempre se comportou bem? Não! Quem vem é o aluno que passou por sub-liberdade, pela casa de passagem, aquele que, quando era adolescente, não deu certo na escola onde estudava. Então, o último lugar a que ele recorre é aqui com a gente - e ele estuda junto com os adultos”.
Após um dia cansativo de trabalho, frequentar a escola é uma questão de tempo, disciplina e propósito. Para alguns, esse cenário ainda é um empecilho que impede a matrícula; para outros, é a realização de um sonho.
“Muitos estão aqui para mudar a realidade profissional, conseguir um diploma, entrar na faculdade. Mas há também os que estão aqui porque sempre sonharam com isso. Não tiveram tempo de estudar na idade certa. Casaram muito cedo, o marido não deixou, ou simplesmente não tiveram oportunidade”, relata o diretor.
Para atender diferentes realidades, o CEEBJA oferece as modalidades presencial e híbrida. Os estudantes que optam pelo ensino híbrido comparecem à escola uma ou duas vezes por semana e, nos demais dias, realizam as atividades por meio de uma plataforma on-line.
Tereza, de 45 anos, escolheu estar todos os dias na sala de aula. Aluna do 9º ano, ela descreve sua experiência como a realização de um desejo interrompido há 30 anos.
“Estar aqui é um sonho. Enfrentei o medo, porque, quando era criança, sofri muito bullying na escola. Tinha muito receio. Estar aqui agora, para mim, é uma superação, porque eu tinha pânico. Foi traumático. Estou feliz, porque agora as condições mudaram totalmente, e eu consigo vir para a escola”, enaltece.
Sua decisão de retornar aos estudos também é uma forma de homenagear a mãe, já falecida. “Um dos principais motivos foi minha mãe ter me pedido para voltar a estudar antes de falecer. Desde pequena, eu ouvia ela dizer: ‘você é tão pequena para o conhecimento desconhecer. Então, você precisa vencer’”, conta Tereza.
Materialização de sonhos
Enfrentar obstáculos requer perseverança, inspiração e uma dose generosa de coragem - qualidades que não faltaram à já conhecida Maria José. Após criar os filhos e vê-los graduados, ela enxergou que havia chegado sua hora de retomar um sonho antigo, por anos adormecido. Aos 35 anos, matriculou-se no curso técnico de Formação de Docentes, em Cafelândia. Hoje, é professora, estudante de Pedagogia e exemplo de garra e determinação em sua família.
Maria acredita que a chave está em nunca desistir, por mais difícil que pareça ser.
“Nunca é tarde para começar. Sempre falo aqui em casa que a vida passa para todo mundo. O tempo não para. Se eu não tivesse começado a estudar lá atrás, quando já era mais velha, aos 14 anos, hoje eu seria uma mulher de quase 50 com apenas aquele conhecimento. Uso a minha trajetória para inspirar as pessoas ao meu redor”, finaliza.
A Educação de Jovens e Adultos pode ser, para muitos, a chave de um novo começo. Em meio a tantas histórias de superação, a inspiração ecoa nas palavras de Paulo Freire: “ninguém é tão grande que não possa aprender, nem tão pequeno que não possa ensinar”.

Nunca é tarde para se obter conhecimento, parabéns pelo texto.
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