Quando a diversão se transforma em dívida
- Maria Heloísa Nunes
- 29 de mai.
- 3 min de leitura
Atualizado: 2 de jun.
Avanço das apostas online no Brasil escancara um mercado bilionário que se alimenta da vulnerabilidade de milhões, transformando entretenimento em vício e ruína emocional

Vivemos em um mundo cada vez mais digital, onde o celular está sempre à mão e novas formas de entretenimento surgem a todo momento. Entre elas, se destacam as plataformas de apostas online, vendidas como uma alternativa simples e atrativa para ganhar dinheiro com poucos cliques - e, claro, uma boa dose de sorte. Mas por trás dessa promessa de lucro rápido, esconde-se uma armadilha que tem levado milhares de brasileiros ao endividamento, ao vício e à ruína emocional.
Com estética chamativa, cores vibrantes, sons agradáveis e frases de incentivo, esses jogos são desenhados para viciar. O exemplo mais emblemático é o chamado “jogo do tigrinho”, que, apesar da aparência lúdica, foi desenvolvido com estratégias comportamentais que induzem o jogador a continuar apostando, mesmo diante de perdas sucessivas. O que ninguém comenta é que, para que um jogador ganhe, milhares precisam perder.
Em tempos de culto ao sucesso rápido, os influenciadores digitais se tornaram os grandes garotos-propaganda dos cassinos virtuais. Mostram ganhos exorbitantes em poucos minutos, mas silenciam sobre as perdas, os riscos e os prejuízos reais. Promovem, assim, um ciclo de ilusão que alimenta um sistema perverso. Não se trata apenas de irresponsabilidade: trata-se de estratégia. Eles são pagos para atrair novos apostadores e, com isso, manter ativa a engrenagem do lucro - que gira às custas da fragilidade emocional e financeira de milhões.
O que deveria ser apenas mais uma forma de entretenimento transformou-se em um vício silencioso, que, em muitos casos, só termina quando já se perdeu tudo - inclusive, o que há de mais precioso: a própria família.
Um estudo da Universidade Federal Fluminense (UFF) define o jogo patológico como um distúrbio comportamental caracterizado pela necessidade incontrolável de apostar, independentemente das consequências. Pessoas com esse transtorno não conseguem parar, mesmo diante de prejuízos evidentes em diversas áreas da vida.
O crescimento das apostas no Brasil, especialmente as esportivas, já deixou de ser fenômeno pontual. É um problema social de larga escala. Entre 2020 e 2024, o setor cresceu 89% e movimentou mais de R$ 100 bilhões apenas em 2023, segundo a PricewaterhouseCoopers (PwC). Um número assustador, sobretudo quando se observa que esse consumo não parte de uma elite econômica, mas de famílias de baixa renda, muitas vezes iludidas pela falsa promessa de ascensão rápida.
Reportagens do Fantástico e do O Globo mostraram como influenciadores - com forte apelo entre jovens de 18 a 35 anos - vendem a ideia de que é possível mudar de vida apostando do sofá de casa. O que não aparece nos vídeos é a sequência de boletos vencidos, cartões estourados, empréstimos para cobrir perdas e o colapso da saúde mental. Quando a realidade bate à porta, é tarde demais: o jogo virou vício, a dívida virou rotina e a promessa de liberdade financeira revelou-se prisão.
A recente criação da Lei 14.790/2024, que busca regulamentar o setor, foi um passo importante. Mas o Brasil ainda enfrenta sérias falhas na fiscalização. Plataformas como o “tigrinho” operam a partir do exterior, fora do alcance legal. Mesmo as legalizadas atuam com pouca restrição sobre publicidade, linguagem e público-alvo. O resultado é alarmante: crianças e adolescentes com fácil acesso aos jogos, famílias desestruturadas e nenhuma política pública eficaz para conter o avanço desse cenário.
O que testemunhamos vai além de uma tendência digital: trata-se de uma engrenagem bilionária que lucra com a ilusão da vitória. As casas de apostas nunca perdem. Pelo contrário: permitir que um jogador ganhe no início faz parte da estratégia para mantê-lo preso. Quanto mais ele joga, maior o lucro da plataforma. Os algoritmos são programados para isso. Os influenciadores, ao reforçarem essa ilusão sem qualquer senso de responsabilidade, são peças-chave na manutenção dessa lógica predatória.
Não se trata de censura. Mas sim de regulação ética, responsável e urgente, que responsabilize tanto as plataformas quanto os criadores de conteúdo.
A aposta, por si só, não é o problema. O problema é quando ela se disfarça de entretenimento, se infiltra nas vulnerabilidades emocionais, e destrói sem que ninguém perceba - até ser tarde demais.
Cada cidadão precisa entender que o clique inocente em um jogo de azar pode esconder uma armadilha financeira e emocional. E a verdadeira pergunta que devemos fazer não é se o jogo é legal. A pergunta é: quantas vidas ainda vamos perder enquanto fingimos que isso é apenas diversão?
Que texto interessante Maria! Parabéns, um assunto muito atual e de extrema importância.
Adorei o timing do texto kkkkk
Parabéns pelo texto!
Adorei a leitura! Assunto que precisa ser acessível.
Devemos falar cada vez mais sobre isso!