“O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias”: quando a Ditadura Militar rouba até a infância
- João Roso
- 6 de jul.
- 5 min de leitura
Uma infância interrompida pela repressão, o olhar de uma criança revela as cicatrizes que a Ditadura deixou em milhões de brasileiros
Existem filmes que falam sobre a Ditadura mostrando conflitos, torturas e soldados armados. Outros escolhem caminhos mais sensíveis, mas nem por isso menos impactantes. O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, dirigido por Cao Hamburger, é um desses filmes. Lançado em 2006, ele nos leva de volta ao Brasil de 1970, período de repressão, censura e medo. Mas, em vez de nos mostrar as prisões sombrias, o diretor nos apresenta a Ditadura pelos olhos de uma criança.
É um filme sobre política, sim. Mas é, antes de tudo, um filme sobre perda, silêncio e ausência. É também uma grande denúncia do quanto a Ditadura afetou a vida de milhares de famílias brasileiras, mesmo que muitas dessas histórias nunca tenham chegado aos livros. Aqui, a Ditadura não aparece de forma escancarada. Ela está nos detalhes, nas entrelinhas, no que não é dito.
Uma criança deixada para trás
A história gira em torno de Mauro, um garoto de 12 anos apaixonado por futebol e por jogos de botão. Logo no início do filme, ele é deixado pelos pais em frente ao prédio do avô, no bairro do Bom Retiro, em São Paulo. Eles dizem que vão sair de férias. Mas o que Mauro ainda não entende e só o espectador adulto compreende é que aquelas “férias” são, na verdade, uma fuga. Os pais são militantes políticos de esquerda e estão sendo perseguidos pelos militares. Precisam sumir para não serem presos, torturados e mortos.
Ao bater na porta do avô, Mauro descobre que ele acabou de morrer. Sem ter para onde ir, o menino é acolhido por Shlomo, um vizinho judeu que vive isolado e de forma religiosa. A partir daí, Mauro precisa aprender a conviver com pessoas diferentes, a lidar com a solidão e a crescer antes da hora. Ele começa a perceber, mesmo sem entender tudo, que algo está muito errado no país onde vive.

Um Brasil dividido entre o futebol e a repressão
O ano é 1970, ano em que a seleção brasileira, com Pelé e outros craques, foi campeã do mundo. A Copa do Mundo é o fundo do filme. Enquanto o povo comemora os gols, a Ditadura aproveita para esconder os crimes que comete. É o velho truque: usar o futebol como distração, para fazer a população esquecer os desaparecidos, os presos políticos, os estudantes assassinados.
O filme mostra isso com muita inteligência. Mauro se agarra ao futebol como forma de escapar da dor. Ele quer ver os jogos, quer torcer, quer sentir alguma alegria em meio à tristeza. Mas nem mesmo o futebol consegue preencher o vazio deixado pelos pais. O que era para ser um momento de comemoração vira também um lembrete da ausência, da saudade e do medo.
A Ditadura vista de outro jeito
Uma das maiores qualidades do filme é mostrar que a Ditadura não afetou só quem estava preso ou lutando diretamente contra o regime. Ela mudou a vida de muita gente comum, principalmente de crianças como Mauro, que nem sabiam direito o que estava acontecendo. Ao mostrar a história do ponto de vista de um menino, o filme emociona e faz a gente pensar.
Não é um filme de cenas fortes, mas um filme forte.
A dor está nas pequenas coisas: na espera por uma ligação que nunca chega, no silêncio das pessoas que sabem mais do que dizem, nos olhares de desconfiança que viraram parte do dia a dia de quem vivia naquela época. O medo estava em todo lugar. E isso, o filme mostra com muita verdade.
Religião, cultura e diferenças
Outro ponto interessante do filme é a convivência de Mauro com a comunidade judaica do Bom Retiro. Ele não é judeu praticante, então precisa se adaptar a costumes diferentes dos seus. A relação com Shlomo começa difícil, mas aos poucos vai se tornando uma espécie de amizade, construída no cuidado e na convivência.
Essa parte do filme também fala sobre identidade. Mauro está crescendo, tentando entender quem é, em um país onde muitas pessoas estavam tentando esconder quem eram para não serem perseguidas. A comunidade judaica, que já havia enfrentado o horror do nazismo, aparece aqui como um grupo que também conhece o exílio, a perda e a luta pelas próprias vidas.
A atuação das crianças emociona
Michel Joelsas, que interpreta Mauro, entrega uma atuação fantástica. Ele passa muita emoção sem precisar dizer muito. Seus olhos tristes, sua postura encolhida e seu jeito de andar dizem mais do que mil palavras. As outras crianças do filme também se destacam, especialmente Hanna, uma menina da vizinhança que se aproxima de Mauro e se torna seu único ponto de apoio em vários momentos.
O diretor acerta ao não forçar a barra. Tudo é mostrado com delicadeza, sem exageros. Justamente por isso, o impacto é ainda maior. Quando o filme acaba, fica um gosto amargo. A gente se pergunta: quantos “Mauros” existiram durante a Ditadura Militar? Quantas infâncias foram interrompidas por causa de um regime autoritário, que não respeitava a liberdade, a democracia, a vida?

Um alerta para os dias de hoje
Em tempos de negacionismo, em que pessoas tentam reescrever o passado e passar a Ditadura como algo positivo, filmes como esse são mais importantes do que nunca. Eles servem como memória, como resistência e como alerta. Mostrar o que aconteceu, mesmo que de forma indireta, é uma forma de dizer: isso não pode se repetir.
Mais recentemente, foi produzida a obra “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, retomando esse mesmo compromisso com a história.
A Ditadura Militar no Brasil matou, censurou, prendeu, torturou e silenciou. E não foram só os militantes que sofreram. Famílias inteiras foram destruídas, amigos foram separados, filhos ficaram órfãos sem nem saber o motivo. É por isso que essas histórias precisam continuar sendo contadas. Porque a memória é uma forma de justiça.
A importância do cinema na preservação da memória
Filmes como O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias ajudam a manter viva a lembrança de um dos períodos mais sombrios do nosso passado. Em um país onde a educação pública também é constantemente atacada, onde a história muitas vezes é tratada com descaso, o cinema se torna uma ferramenta de resistência e conscientização. Ele não apenas informa, ele emociona, toca, transforma pontos de vista.
Muita gente que assiste ao filme pode não saber detalhes sobre o Regime Militar, mas entende, ao acompanhar a trajetória de Mauro, que aquele tempo foi cruel e injusto. Entender isso é essencial para que não repitamos os mesmos erros.
A história do Brasil tem feridas abertas. São muitas as famílias que nunca enterraram seus mortos, que nunca souberam o paradeiro de seus filhos, pais e irmãos. A Ditadura não foi uma “revolução” nem um “mal necessário”. Foi um golpe, foi repressão, foi morte. E precisa continuar sendo tratada como tal.
Por tudo isso, O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias é mais do que um ótimo filme. É um lembrete de que a liberdade é frágil e que é dever de todos nós protegê-la.
Possui uma direção sensível, um roteiro bem construído e atuações marcantes, o filme consegue emocionar sem apelar, e criticar sem precisar “gritar”. É uma obra que toca fundo e que nos faz refletir sobre o Brasil de ontem e, infelizmente, sobre o Brasil de hoje.
Porque quando o passado é esquecido, o presente corre perigo. E lembrar da Ditadura é também um ato de responsabilidade com o futuro, para que isso nunca mais se repita.
Comments