Muito além do artesanato: a filosofia de um Maluco da Estrada
- Emanuelly Aline Gomes e Vinícius do Nascimento
- 6 de jun.
- 6 min de leitura
Atualizado: 8 de jun.
Um artista que trocou estabilidade por liberdade, viveu nas estradas do país e hoje redescobre o valor da presença como pai

Caminhando pelo centro de uma cidade movimentada, é comum ver pessoas de cabeça erguida, sem olhar para os lados e fingindo não ouvir a agitação ao seu redor, ignorando especialmente os vendedores que clamam por um minuto de atenção àquilo que é seu ganha-pão. Envoltos na própria introspecção e na habilidade treinada de não reparar os que não caminham à altura do próprio olhar, dificilmente há um momento de questionamento sobre a realidade dos que vivem da venda de camelô. É nesse cenário que, observando um pouco ao redor, encontramos nosso personagem.
Sentado em uma cadeira de acampamento, com suas obras de artesanato estendidas em um pano no chão, conhecemos Matheus Eduardo Fernandes. O rosto levemente bronzeado, as mãos com calos visíveis, de quem escolheu e foi escolhido pela arte. Um cara relaxado, com fala mansa e, certamente, convincente. Mas, com certeza, a característica de Matheus que mais chamava atenção eram os olhos: um azul profundo, que mostra cicatrizes muito além daquelas que se pode ver somente a olho nu; estas precisavam de uma atenção especial, pois se escondiam por trás de uma sabedoria e maturidade que ultrapassavam a sua idade. Eram olhos que viram e viveram muito além do que um mero espectador poderia reconhecer.
A história do artesão começa não com a arte, mas com o esporte. Ainda na adolescência, o jovem Matheus não imaginava que se tornaria um artista nômade, mas o gosto por viajar e conhecer novos lugares já estava presente, uma realidade alcançada por meio dos campeonatos de skate dos quais participava e das viagens entre amigos.
Nessa mesma época, o skatista já pegava o gosto pelo artesanato. “Eu sempre gostei, na verdade, né? De arte, de artesanato em si, de pulseirinha, colar, essas coisas. E aí, aqui em Cascavel mesmo, antigamente, tinha ali na (rua) Padre Champagnat, na frente da Mellos, as barraquinhas de artesanato. Aí eu comprava o artesanato ali deles, chegava em casa e desfazia para aprender a refazer, tá ligado?”
Após a formação em Gestão Financeira, ele percebeu que não se encaixava no modelo comum de trabalho. A criatividade, a vontade de fazer com as próprias mãos e de conhecer o mundo latejavam em seu peito. Então, aos 20 anos, colocou o pé na estrada e não olhou para trás.
“Quando eu assumi essa realidade que eu vivo, foi o momento de eu selecionar minhas amizades, porque muitos viraram a cara para mim, muitos me tiraram de doido, falaram: ‘Ih, ó, o cara tá pirando, mano’, e muitos tiveram vergonha do que eu sou hoje, tá ligado? Só que, para mim, por um momento, doeu, foi foda, mas eu aprendi diferente, a mesma coisa, né? Pô, coitado deles, cara, que não têm uma mente aberta”.
Viagens que ele fez, amigos que ele tem
É perceptível o arrepio dos pelos dos braços e a desenvoltura na fala de Matheus quando cita o documentário do diretor brasileiro Rafael Lage, Malucos de Estrada, em contraposição ao rótulo “hippie”.
“Eles não faziam artesanato para viver. Eles faziam artesanato próprio, para eles usarem e adaptar ao figurino lá da época”, continua, “e aí associam à gente, né? A gente hoje não é ‘hippie’. Na verdade, a gente é um movimento cultural brasileiro que se chama Malucos de Estrada, tem até um documentário na internet”.
A obra de 2015 está disponível no YouTube. Lage retrata o dia a dia de pessoas que escolheram fazer das estradas do país sua moradia. O jeito como dormem, se sustentam e fazem cuidados básicos, mostrado no documentário, se assemelha às histórias que Matheus conta para nós enquanto nos sentamos em nossas sandálias.
Instalado em Cascavel no momento desta entrevista, seu ponto de venda é a frente de uma loja de departamentos no centro. Sobre o pano estirado no chão de paver, artefatos cautelosamente catalogados contam a história do nosso personagem. Ele esclarece que, quando se está na BR, não há a preocupação de alugar um lugar para dormir. Matheus relata ter, por muitas vezes, dormido embaixo de marquises, em coretos e praças. E conhece muitos malucos que não utilizavam sequer barracas, passavam as noites enrolados em isolantes térmicos.
“Estamos sempre viajando, levando para outros lugares, conhecendo outros lugares, explorando, sabe? Por mais que eu não me considere morador de rua, já dormi muitas, incansáveis vezes na rua, tá ligado? E assim, a gente se adapta também”.
Entretanto, para ele, o mais complicado no início da sua vida como artesão não era passar as noites em situação de rua, mas sim ofertar sua arte aos que passavam. “A gente tem uma parada que chamamos de manguear”, Matheus explica o termo: mostrar às pessoas interessadas que a vantagem de levar as peças é ajudá-lo. “Porque, se eu ficar sentado aqui calado, ninguém vai parar, tá ligado? [...] Tipo assim, receber vários ‘não’ ou vários olhares preconceituosos. A pessoa olhar no meu olho e nem dar um bom dia, só me ignorar... No começo isso era bem frustrante, tá ligado?”
Lamenta o artesão: “Cada pessoa tem uma criação, cada pessoa tem sua mente. E esse tipo de pessoa que ignora, não responde, olha para o outro lado... hoje eu tenho até dó delas, entendeu? Porque quem está perdendo de conhecer a arte são elas”.
Ao ser questionado sobre qual era a melhor parte de ser um “maluco da estrada”, Matheus fez um breve silêncio para pensar, pela primeira vez desde que iniciamos a entrevista. Ele, com respostas ágeis e, o tempo todo, seguro das suas falas, inicia: “Pô, cara, a melhor é difícil. Porque são tantas boas, tá ligado? Tipo assim, tantos momentos, tantas amizades, sabe? Tantas pessoas que eu conheci”.
O artista se orgulha das pessoas que conheceu ao longo dos oito anos em que viveu produzindo sua arte, viajando por rodovias, dormindo em cidades pequenas ou ficando acordado até tarde vendendo em cidades turísticas, e lamenta, mudando o tom de voz e fazendo os olhos azuis profundos brilharem: “Pô, cara, eu nem faço ideia de quando eu vou ver de novo essas pessoas na minha vida. Até porque agora eu parei de viajar, não faço ideia nem de quando eu vou de novo aqui para Foz do Iguaçu, que é do lado. Quem dirá para ir lá para o Pará, Tocantins, lá para o Nordeste, tá ligado? Então, pô, cara, essas amizades fazem muita falta, saca? Porque eu sou uma pessoa de bem poucos amigos”.
As estradas da própria vida
Após nove anos na estrada, vivenciando tudo que a vida de Maluco tem a oferecer, Matheus encontrou algo que superava a necessidade de viajar: o amor de pai. Com o olhar marejado e a voz vacilante, era perceptível o amor de Matheus por seu filho e que, apesar da adaptação à vida estabilizada ainda tomar uma parte do seu peito, jamais tomaria outro rumo além daquele que o tornaria presente na vida do seu garoto.
“Antes eu tinha uma ambição que era sem fim, sem controle, cara. Eu não conseguia ficar parado, não conseguia mesmo. Tipo, me dava ansiedade, eu ficava mal, eu me sentia deprimido, sabe? Tinha que, tipo, em menos de duas, três semanas estar em outro lugar, sabe? E hoje em dia, pô, cara, me adaptei tanto. Como a minha companheira atual fala: eu meio que supri uma necessidade com outra; supri a necessidade de viajar com a necessidade de estar presente com o meu filho”.
Para Matheus, a vida como um Maluco de Estrada é uma escolha, um estilo de vida que, para dar certo, exige alguém com uma cabeça muito boa. “Tem muita gente que fala assim: ‘Pô, se tudo der errado, eu viro hippie.’ Muito pelo contrário, se tudo der errado, não é hippie que a pessoa vai conseguir ser, tá ligado?”
No momento, ele busca dar ao filho a escolha e o conhecimento dos diversos rumos que a vida pode ter. Algo que, para ele, não é totalmente garantido aos “filhos de Malucos (da Estrada)”, pois, por muitas vezes, essas crianças não conhecem outra realidade além da estrada.
“Essa aí é uma parada que eu falo, o porquê eu parei e dedico toda essa atenção ao meu filho: porque eu quero que, se ele decidir viver e fazer o que eu faço, que seja por opção própria”.
Mas, infelizmente, a vida de um artista em Cascavel não é a mais fácil para se ter. Quando questionado sobre o futuro, Matheus expõe a vontade de ir morar em uma cidade mais turística, um lugar onde a venda de arte se torna mais valorizada, mas esses planos ainda são apenas uma vontade, visto que existem questões burocráticas relacionadas à guarda do seu filho. Se essa opção não der certo, o artesão afirma que buscará outras formas de arte, como a fundição e a criação de joias. O artista finaliza: “Vamos dizer, eu tenho duas direções que eu não sei qual que vai ser, tá ligado? Mas a que for pra mim vai estar ótimo, tendo a prioridade de estar próximo ao meu filho, estar com ele, saca”.
A certeza que fica é que a arte, a filosofia dos Malucos da Estrada e as experiências na BR continuarão fazendo parte da sua vida. Cada nó, cada margarida eternizada na resina, cada couro trançado sempre terá uma parte de Matheus.
Nossa! Que textoooooo!!! Parabéns aos dois.
Manu e Vini, que texto maravilhoso. Parece que eu estava junto com vocês, conversando com o Matheus. Um homem simples, que decidiu viver a vida ao seu modo: viajando, conhecendo lugares diferentes, fazendo amizades pelo caminho... Uma vida simples e, ao mesmo tempo, tão rica. Rica de cultura, arte e histórias.
👏👏👏
Texto maravilhoso e pauta de extrema importância.
Parabéns, Manu! 👏