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Mais que abrigo, um recomeço

Albergue André Luiz acolhe migrantes, vítimas da exclusão social e sobreviventes da violência invisível


*Todos os nomes foram alterados para preservar a identidade das fontes


Mantido pela Sociedade Espírita Fraternidade de Jesus e fundado há mais de 30 anos em Cascavel (PR), o Albergue Noturno André Luiz oferece acolhimento a pessoas em situação de rua, incluindo refeições, kits de higiene, apoio emocional e encaminhamentos sociais | Crédito da Foto: Blog Albergue André Luiz
Mantido pela Sociedade Espírita Fraternidade de Jesus e fundado há mais de 30 anos em Cascavel (PR), o Albergue Noturno André Luiz oferece acolhimento a pessoas em situação de rua, incluindo refeições, kits de higiene, apoio emocional e encaminhamentos sociais | Crédito da Foto: Blog Albergue André Luiz

Ali, onde o frio da calçada dá lugar a um colchão, o Albergue André Luiz acolhe mais do que corpos cansados. Ele abriga histórias. Vidas entrelaçadas por perdas, lutas silenciosas e lampejos de esperança.


Em Cascavel, a quantidade de pessoas em situação de rua mais que quadruplicou em seis anos: subiu de 800 em 2017 para cerca de 3.500 em 2023, o que reflete um aumento de 338 %. Segundo registros do Cadastro Único, o número médio gira em torno de 400 pessoas, mas oscila com a migração de famílias para a cidade. Ainda assim, os serviços municipais - Centro de Referência de Assistência Social (Cras), Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), Centro Pop e albergues - realizaram mais de 93 mil atendimentos em 2023, provando que 1 em cada 3 habitantes da cidade recorreu à assistência pública no ano passado.


Julia foi a primeira a entrar na sala onde as entrevistas iriam acontecer. Tinha um olhar alegre e encorajador, que escondia a dor que a vida havia lhe imposto. Embora aparentasse ter pouco mais de 20 anos, já estava na casa dos 30. Logo atrás, veio Maria, com um sorriso tímido e sua filha de três anos no colo. Conversavam com a intimidade de amigas de longa data.


Maria veio do Peru, fugindo da crise econômica que assola o país.

“Foram sete dias de ônibus, do Peru até Cascavel. Uma viagem muito cansativa, muito difícil. Mas tínhamos que vir pela nossa filha” Difícil", disse, sem querer revisitar o passado.

Julia interveio com gentileza, como quem conhece bem os silêncios da amiga.

“Conta como seu marido já está trabalhando”.

Maria sorriu. O marido conseguiu um emprego em menos de uma semana após a chegada ao Brasil, com apoio do albergue. Em breve, esperam se mudar para uma pequena casa só deles. Para quem perdeu quase tudo, esse recomeço é um sonho palpável.


Julia também compartilhou sua trajetória.

“Vim parar aqui depois de uma tentativa suicida. Fiquei 15 dias no hospital. Quando saí, não tinha mais onde ficar”.

Ela dividia um apartamento com outras duas pessoas. Após o episódio, foi desligada do contrato.

“Descobri que tenho um tumor. Agora estou aqui até a cirurgia. Depois, vou para um apartamento. Já está tudo resolvido”.

Enquanto contava sua história, Julia mantinha um semblante sereno, quase sempre sorridente. Mas havia tristeza contida em seus olhos.


“Aqui a gente conhece pessoas, faz amizades. A casa é um lugar muito bom. Eles me levam às consultas na Uopeccan, me buscam, me dão todo o apoio”.

No Brasil, uma tentativa de suicídio é registrada a cada 26 minutos, segundo dados do Ministério da Saúde. Casos como o de Julia escancaram a importância de serviços de acolhimento.


“O albergue é, muitas vezes, o primeiro lugar que a pessoa encontra depois de um trauma profundo”, explicou Ariane Carina dos Santos Peretti, coordenadora do Albergue André Luiz. “Aqui, oferecemos escuta, apoio psicológico, alimentação e abrigo, mas principalmente, dignidade”.

Em 2023, o espaço acolheu mais de 850 pessoas em situação de vulnerabilidade. Muitos dos acolhidos chegam ao local após traumas profundos, como episódios de violência, tentativas de suicídio, internações psiquiátricas, entre outros | Crédito da Foto: Blog Albergue André Luiz
Em 2023, o espaço acolheu mais de 850 pessoas em situação de vulnerabilidade. Muitos dos acolhidos chegam ao local após traumas profundos, como episódios de violência, tentativas de suicídio, internações psiquiátricas, entre outros | Crédito da Foto: Blog Albergue André Luiz

Acolher é a palavra que rege a rotina do local. Ariane conta que, só em 2023, foram mais de 850 pessoas atendidas, de diferentes origens e situações.

“São pessoas em situação de rua, migrantes, mulheres vítimas de violência, pessoas que passaram por internações psiquiátricas ou fugiram do trabalho escravo”.

Foi assim também com Seu Zé, um senhor venezuelano que chegou à entrevista com olhos marejados e passos hesitantes.

“Muita dificuldade, muita fome. Não tem trabalho. Não temos direitos”,

contou com a voz embargada ao lembrar da sua saída da Venezuela. Ele vive no Brasil há nove anos, mas seu percurso foi longo e perigoso.


Durante esse tempo, trabalhou como garimpeiro.

“Fui para o Mato Grosso, em um garimpo que dizia ser legal, mas não era. Tinha uma cooperativa por trás, mas sem direito nenhum. Se machuca, morre… O que acontece lá dentro, fica lá dentro”.

A denúncia do garimpo ilegal - realidade comum na região Norte do Brasil - revela um sistema de exploração onde a vida humana vale pouco. Segundo a Repórter Brasil, em 2023 houve mais de 400 denúncias de trabalho análogo à escravidão em garimpos ilegais, envolvendo migrantes venezuelanos em sua maioria. Seu Zé é um entre tantos.

Ele mostrou um vídeo no celular com imagens da cratera onde trabalhava, sustentada por troncos e cordas frágeis.


“Era uma zona de guerra. Dias depois, um helicóptero apareceu e começou a atirar. Quem não morreu teve que fugir para a mata. Andei por dias, tentando não morrer de fome ou ser comido por onça”.

Sem dinheiro, com apenas um celular velho, ele chegou a Cascavel e foi encaminhado ao albergue. Ali, reencontrou um pouco de segurança. Ao falar sobre seus sonhos, ele não conteve o choro:


“Quero ver meus filhos de novo. Quero trazer minha mãe. Só isso que eu quero”.

Mesmo em meio à dor, há quem siga acreditando.

“É bom falar sobre. Tava com um negócio aqui dentro, me sufocando. Não posso falar com os outros aqui, eles também têm problemas. Nem com a psicóloga eu falei tudo isso”.

Seu Zé, como tantos outros, carrega suas cicatrizes em silêncio, até encontrar alguém disposto a escutar.


A coordenadora Ariane enfatiza que o trabalho da equipe vai além do assistencialismo.

“A gente escuta, entende a história, constrói caminhos. Muitos chegam em silêncio, como o Seu Zé, e aos poucos redescobrem o direito de sonhar.”

Sonhos simples, como os de Julia, que só quer saúde e estabilidade, ou os de Maria, que deseja uma casa e uma infância feliz para a filha. Sonhos que deveriam ser básicos, mas ainda são luxos para muitos.


O Albergue André Luiz funciona como um ponto de transição, um abrigo para o corpo - mas principalmente, para o espírito. É ali, entre colchões gastos e refeições simples, que histórias ganham voz. Histórias que merecem ser contadas. E ouvidas.


Momento do jantar no Albergue André Luiz, em Cascavel (PR). Todas as noites, voluntários e funcionários do local distribuem refeições completas aos acolhidos, que podem tomar banho, trocar de roupa e dormir em segurança | Crédito da Foto: Blog Albergue André Luiz
Momento do jantar no Albergue André Luiz, em Cascavel (PR). Todas as noites, voluntários e funcionários do local distribuem refeições completas aos acolhidos, que podem tomar banho, trocar de roupa e dormir em segurança | Crédito da Foto: Blog Albergue André Luiz




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Produzido pelos acadêmicos do 5º período do curso de Jornalismo do Centro Universitário FAG, na disciplina de Webjornalismo, sob orientação do professor Alcemar Araújo.

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