Braçadas que ninguém aplaude
- Thabata Lima François
- 30 de jun.
- 4 min de leitura
No lago de Cascavel, atletas da paracanoagem treinam em silêncio, vencem desafios diários e carregam no corpo e na água histórias que o público raramente vê

Era cedo, e o lago ainda nem tinha acordado por completo. O vento frio passava devagar pela superfície da água, e só se ouvia o som do remo cortando o espelho.
Foi ali, num dia que parecia comum, que percebi: o esporte não é só sobre competir ou vencer. É também , e talvez principalmente, sobre o que ninguém vê. E ninguém fala.
Entre conversas e entrevistas à beira do lago, ouvi três histórias que me fizeram repensar tudo: Odirlei Moreira Gonçalves, Cláudio Koropka e Sidimar Leal. Três atletas da paracanoagem de Cascavel. Três trajetórias atravessadas por acidentes e transformadas pelo esporte. Três vidas que encontraram um jeito de seguir, mesmo quando tudo parecia perdido.
Mas o que mais chamou a atenção não foi a dor. Foi o silêncio em volta dela.

Cascavel tem atletas que treinam todos os dias, que viajam para competir, que sobem ao pódio. Que trazem medalhas. Mas você viu alguma multidão aplaudindo? Algum post viral? Inúmeras marcas apoiando?
Nem eu.
Odirlei me contou que ficou seis meses dentro do barco sem nem pegar no remo. Todo esse tempo para aprender a equilibrar o corpo. Depois de um acidente que o deixou paraplégico, conheceu a paracanoagem em Brasília, voltou para Cascavel e, como não havia estrutura adaptada no clube da cidade, comprou o próprio barco. Treinou em silêncio. Montou sua rotina. Competiu. Ganhou. E continua seguindo em frente. Atualmente, se consagrou como campeão brasileiro, e seguirá para águas antes nunca desbravadas, a Hungria o espera para disputar um campeonato mundial pela primeira vez.
“A canoagem é tudo pra mim. Não vivo dela, mas não abandono por nada”, disse, entre uma frase e outra sobre eliminatórias.
Cláudio me contou que entrou no esporte por acaso. Foi fazer uma aula por insistência de um amigo da família. “Sem intenção nenhuma”, disse. Só que, logo na primeira aula, o lago virou lugar de reencontro. Cláudio levou um tiro aos 18 anos. Bala perdida. Doze anos depois, é medalhista no Paranaense e no Parajaps. E diz que a paracanoagem mudou tudo: corpo, cabeça, ritmo e autonomia.
“Cada tombo foi um aprendizado. No começo eu caía bastante, mas fui gostando cada vez mais”, comentou.
Já Sidimar, campeão estadual duas vezes, quase desistiu no início. Achou que não ia conseguir remar. Tinha perdido a perna direita num acidente de trabalho, com um trator. Mas insistiu. E ali no lago, reencontrou não só o próprio corpo, mas também a vontade.
“Na água, a gente esquece as dificuldades da vida”.
Esses três relatos — e tantos outros que cabem na borda do lago — têm uma coisa em comum: ninguém está olhando. E isso diz mais sobre nós do que sobre eles.
“Tem gente que passa ali no lago, vê a gente treinando e nem imagina que tem campeão brasileiro remando ali”, contou Odirlei.
Vivemos num país que se emociona com medalhas Paralímpicas, mas não faz ideia de onde esses atletas vêm. Que aplaude no pódio, mas silencia no treino. Que compartilha recordes, mas ignora a estrutura precária, a falta de patrocínio, o abandono institucional que começa logo ali, no clube da esquina.
Odirlei falou uma coisa que me atravessou:
“A gente teve um campeonato brasileiro aqui. E ninguém soube. Só quem é do meio, ou quem passou no lago por acaso”.
Você consegue imaginar isso? Um campeonato nacional, com atletas de elite, sediado na sua cidade — e tratado como se fosse qualquer coisa?
Pois é.
A paracanoagem em Cascavel não tem visibilidade. Não tem reconhecimento. Tem grandes resultados. E silêncio.
E aí vem a pergunta incômoda: por que a gente não fala sobre isso?
Talvez porque doa. Talvez porque desestabilize. Ou talvez porque nos force a encarar o esporte de verdade — não aquele embalado em marketing e fama, mas aquele que começa no trauma, passa pela água e termina na raia. Sem glamour. Mas com verdade.
O que eu vi no lago foi mais do que superação. Foi rotina. Disciplina. Amor. Persistência real. Não a da hashtag, mas a do corpo doendo, da água fria, da ausência de torcida.
Foi em um dia frio que vi Cláudio cruzando a água com entrega. O vento cortava, os olhos ardiam. Mas não existia hesitação, apenas vontade.
Vi Sidimar sonhando com a Paralimpíada. Vi medalhas, sim — mas, acima de tudo, vi convicção.

Saí com a sensação de que talvez a gente esteja escolhendo mal onde mirar os olhos.
Estamos vendo demais os que já são vistos. E deixando no escuro os que realmente estão lutando.
O mínimo que podemos fazer é falar. Ouvir, ver, apoiar. Sidimar chegou a um lugar único. As Paralimpíadas estão mais perto do que ele imaginava, quase ao alcance das mãos.
“Pode demorar, mas com fé e treino a gente chega lá”, ressaltou.
Hoje, é bicampeão paranaense e terceiro lugar na Copa Brasil. Mas, mais do que títulos, ele destaca a transformação pessoal. “Na água, a gente cuida da mente, do corpo. E começa a sonhar de novo.”
Essas são conquistas e tanto. Não só para ele ou para o clube, mas para o Brasil. Para o esporte como um todo. E mesmo assim, os patrocínios não chegam…
O mais preocupante é que essa invisibilidade não se restringe apenas à paracanoagem. Ela escancara um padrão: nossos olhos estão treinados a buscar o brilho pronto, e não a raiz que sangra.
Mas, na grande maioria das vezes, é o sangue quem garante o brilho da medalha: o suor, o sacrifício, a coragem.
A coragem de se permitir continuar — mesmo quando não há ninguém aplaudindo.
Parabéns pela reportagem Thabata, texto sensacional!!!!
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Reportagem emocionante. O esporte é terapia para eles ❤️
Tema relevante, texto profundo. Simplesmente arrasou, amiga!
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que legal!