Beleza à base de jejum e Ozempic: o corpo como performance de classe
- Ana Cecília Amorim
- 4 de jun.
- 5 min de leitura
Atualizado: 6 de jun.
Como os padrões estéticos refletem as mudanças econômicas e reforçam a divisão de classes

Padrões de beleza sempre estiveram relacionados com o momento econômico e histórico. Durante os períodos do Renascimento e Barroco, por exemplo - em que um saía do feudalismo para a criação das primeiras cidades e a ascensão da burguesia, e o outro passava pelo absolutismo monárquico -, a população se via praticamente sem alimentos, ou com alimentos de baixo valor nutricional, como cereais e grãos. A aparência magra e doente da parcela “pobre” da sociedade tornou corpos voluptuosos, grandes, sinônimo de saúde e condições financeiras.
Já com a chegada da Revolução Industrial e a ascensão da moda, corpos magros se tornaram equivalentes à determinação, força de vontade e disciplina - conceitos trazidos junto com o novo capitalismo. Apesar de a população ainda passar por dificuldades financeiras e pela escassez de comida, agora a magreza era escolha da elite, e não necessidade, como no caso dos trabalhadores da indústria: uma magreza saudável, e não adoecida.
Com as cargas de trabalho exaustivas e a criação de uma nova classe de alimentos - os ultraprocessados - no século XX, os níveis de obesidade, que eram praticamente inexistentes e concentrados nas elites, se tornaram cada vez mais comuns. Em 1980, 15% da população estadunidense estava obesa, segundo dados dos Centers for Disease Control and Prevention (CDC), e esse número era ainda mais significativo na população de baixa renda. Entre os anos de 1988 e 1994, a taxa de obesidade dos homens de baixa renda passou de 21,1% para 29,2%, e das mulheres, de 34,5% para 42%, segundo o CDC.
A elite, também conhecida como classe ociosa, ressignificou mais uma vez a magreza, que agora significava tempo: tempo para comer de maneira saudável, tempo para se exercitar e tempo para praticar esportes. E, para ter tempo, é necessário ter dinheiro - dinheiro geracional, dinheiro que não precisa ser trabalhado para ser conquistado, pois já foi herdado.
Padrões de beleza nunca foram sobre estética, mas sim sobre diferenciar a burguesia da classe trabalhadora, impor a divisão social, olhar e saber a que grupo essa pessoa pertence. E a verdade é que todos queremos pertencer à classe beneficiada por esse sistema. Então, a busca constante para se enquadrar ao padrão de beleza imposto como certo sempre pairou como uma nuvem cinza sobre a população - principalmente, a feminina.
O verdadeiro divisor de águas, quando falamos sobre padrões estéticos, foi a criação da internet e das redes sociais. Agora, todos são bombardeados pelos padrões a cada vez que desbloqueiam o celular. Influenciadores digitais exibem os corpos perfeitos, mas agora com a mensagem: “Qualquer um consegue, é só querer.” O sentimento de frustração e derrota toma conta de grande parte das mulheres que não conseguem atingir os padrões - pela falta de dinheiro para comprar comidas orgânicas, pelas exaustivas horas de trabalho, pelo dia perdido no trânsito. Enquanto isso, a rotina de exercícios, alimentação saudável e medicamentos caros é mascarada como força de vontade.
Eu não estou excluída dessa obsessão pelo padrão de beleza. Por mais que eu entenda, racionalmente, todas essas imposições, às vezes me pego desejando um corpo que não é meu e provavelmente nunca será - e me culpando por isso. Pensamentos como “Que bom que passei mal, perdi uns 3 kg com isso”, por mais problemáticos que sejam - e eu sei que são -, passam com certa frequência pela minha cabeça e me fazem pensar: até que ponto podemos ir para nos enquadrarmos em um padrão?
Durante a pandemia da Covid-19, surgiram muitos influenciadores falando sobre body positive (positividade corporal) e inclusão de corpos fora dos padrões na moda, e sobre se aceitar da maneira que você é. Porém, esse discurso, tão abraçado por grandes marcas durante esse período, logo caiu por terra com a volta da estética Y2K e a romantização da magreza a qualquer custo. Mas e o porquê disso? Segundo a CEO da Dezon e idealizadora do podcast Ciao, Bella, Iza Dezon:
“Nunca chegamos à aceitação - ela chegou por meio do marketing. Nunca houve uma verdadeira discussão de diversidade no mercado de moda que não fosse uma oportunidade de vender mais através de uma comunicação. O que acontece é que a mídia se adequou às mensagens que estavam sobressaindo. A sensação de estarmos voltando para trás vem do fato de que tudo foi construído de forma superficial - sem desmerecer, claro, as grandes mulheres por trás dos movimentos de aceitação. No entanto, é importante entender que é uma luta constante”.
E, com isso, o surgimento do Ozempic - medicamento para o tratamento da diabetes tipo 2 - caiu no gosto dos famosos por ser um método rápido de emagrecimento extremo. Vendido apenas com receita, mas nada que o dinheiro não possa comprar. Porém, isso está prestes a mudar: a patente do medicamento no Brasil expira em julho de 2026 e, com isso, a produção do medicamento genérico - que pode chegar a ser 60% mais barato que o produto original - será autorizada.
Com a maior acessibilidade do medicamento, a pergunta que fica é: qual será o novo padrão de beleza? A resposta já está bem clara para qualquer um que acompanhe o mundo da moda. Com o aumento constante do valor dos alimentos no mercado, está cada vez mais difícil comprar comida. E, com isso, vem a comida como acessório, comida para ser vestida. Os corpos permanecem magros; o que diferencia a elite é o desperdício do alimento. Vestir a comida e não comê-la se torna um novo símbolo de status. Um paradoxo cruel: quanto mais se tem acesso à comida, menos ela é consumida - e mais ela é performada.
A necessidade de distanciamento que a elite sente em relação à população é tão grande que não há limites para os absurdos. Enquanto dados da World Food Program USA mostram que uma a cada 11 pessoas passam fome no mundo, vemos cada vez mais ensaios publicitários - como o da Hailey Bieber para sua parceria com a Fila, ou o da Zendaya para a ON - exaltando o desperdício de comida. Com a mensagem de que: nós poderíamos comer, mas não comemos. Temos o privilégio de fazer essa escolha.
Em suma, a beleza sempre foi vista como um espetáculo de poder e privilégio, onde o corpo se torna o palco para exibir luxo e privilégio de escolha. Da aristocracia aos influencers de hoje em dia, os padrões de beleza servem para reforçar a distinção de classes.
E essa é a nova vitrine da desigualdade.

Parabéns pelo texto!
Fica a reflexão!
Parabéns pelo Texto Ana 👏🏻
Excelente texto, Ana. A gente fica tentando se encaixar em padrões que não dizem nada sobre saúde, mas sobre poder, status e exclusão.
muito importante refletirmos sobre isso, parabéns pelo texto, ana!