Autores de ficção científica que escreveram o futuro
- Mikaella de Moura Franzão
- 25 de abr.
- 9 min de leitura
Atualizado: 27 de abr.
Muito mais que contar histórias, eles previram os rumos da ciência e da tecnologia

Eles estavam à frente de seu tempo. Possivelmente, cogitavam que os rabiscos sob suas penas não passavam de meras divagações, fruto do imaginário de seus insensatos pensamentos que, por vezes, eram férteis demais. Mas esses autores de ficção científica fizeram muito mais que contar histórias: eles escreveram o futuro.
Mary Shelley: da imaginação à ciência da vida
Em uma época na qual o tempo ocioso era preenchido com conversas que se estendiam por horas a fio, histórias eram compartilhadas, sorrisos arrancados, medos despertados e o futuro, idealizado. E foi assim, através de uma brincadeira entre seu noivo e um amigo, que o desafio de escrever uma história sobre fantasmas tornou Mary Wollstonecraft Shelley (1797-1851) a precursora dos livros de ficção científica, com sua obra de sucesso “Frankenstein”.
Publicado em 1818, o livro conta a história de Victor Frankenstein, um jovem cientista que decide desafiar o mundo dos mortos ao construir uma criatura através de restos mortais e dar-lhe vida. Ao juntar braços, pernas e demais órgãos do corpo humano, Victor realizava nada menos que um transplante, algo que, na vida real, só veio a ser possível na década de 1950 - aproximadamente 130 anos após a publicação do clássico. Além disso, para dar vida a sua criação, Frankenstein estudou o galvanismo: ação das correntes elétricas contínuas sobre os órgãos vivos. Com isso, Mary Shelley previa o desfibrilador: dispositivo médico que emite descarga elétrica controlada para restaurar os batimentos cardíacos.
“Eu via o horrível espectro de um homem estendido, que, sob a ação de alguma máquina poderosa, mostrava sinais de vida e se agitava com um movimento meio-vivo, desajeitado”. (Trecho do livro “Frankenstein” de Mary Shelley).
Júlio Verne: do fundo do mar ao espaço sideral
Enquanto Mary Shelley é considerada a mãe da ficção científica, Jules Gabriel Verne (1828-1905) é visto como o pai do gênero literário. Júlio Verne, como é conhecido no Brasil, lançou, em 1865, sua obra “Da Terra à Lua”. Neste livro, um grupo de veteranos de guerra decide lançar um projétil para a lua, que o autor descreve como feito em alumínio, em formato cônico, revestido interiormente por um acolchoado e com vidros espessos para que os tripulantes observassem o percurso. Nesta época, nem mesmo carros existiam, quem diria foguetes, mas a imaginação de Júlio voava longe e, para ele, os homens pisarem na lua e conquistarem os planetas era só uma questão de tempo.
“O homem começou por viajar com as mãos pelo chão, depois, um belo dia, só nos dois pés, depois numa carroça, depois em caleça, depois em carroção, depois em diligência, depois em caminho de ferro; pois bem! O projétil é a viatura do futuro; que, a falar a verdade, os planetas não são senão outros tantos projéteis, simples balas de canhão arremessadas pela mão do Criador. Agora vamos à Lua, e ainda havemos de ir aos planetas, ainda havemos de ir às estrelas, como se vai hoje de Liverpool a Nova Iorque, com facilidade, rapidez e segurança. Em breve serão atravessados o oceano atmosférico, bem como os oceanos da Lua! A distância é apenas um termo de relação, e havemos de chegar afinal a reduzi-la a zero”. (Trecho do livro “Da Terra à Lua” de Júlio Verne).
Em outra obra do autor, “Vinte Mil Léguas Submarinas”, lançada em 1870, uma expedição é organizada para encontrar um monstro marinho. Ao longo da história, descobrimos que o “monstro” é, na verdade, o submarino Nautilus, movido à eletricidade, algo inimaginável para a época, quando os veículos mais modernos eram movidos a vapor.
“O monstro de aço acabava de emergir para respirar, como as baleias”. (Trecho do livro “Vinte Mil Léguas Submarinas” de Júlio Verne).
“Não há o perigo do carvão se esgotar, porque a eletricidade é o seu agente mecânico; não receia tempestades, porque a alguns metros de profundidade reina a mais absoluta tranquilidade. Aqui tem, professor, o navio por excelência”. (Fala de Capitão Nemo no livro “Vinte Mil Léguas Submarinas” de Júlio Verne).
Também neste livro, Verne descreve uma arma - um corrimão do Nautilus - carregada de eletricidade que, quando tocada, dá choque. Seu funcionamento é muito parecido com o de uma pistola de eletrochoque - que imobiliza temporariamente uma pessoa -, inventada somente na década de 1990.
“Aquilo não era um corrimão comum, mas um cabo de metal carregado de eletricidade. Quem lhe tocasse receberia um choque que seria mortal, se o Capitão Nemo tivesse lançado nele uma corrente de maior potência”. (Trecho do livro “Vinte Mil Léguas Submarinas” de Júlio Verne).
Com mais de 100 livros publicados, Júlio Verne fez inúmeras previsões assertivas. Em seu conto “O Dia de Um Jornalista Americano no Ano 2889”, publicado em 1889, o autor previu a transmissão de notícias pelo rádio e citou um aparelho que chamou de “telefoto”, usado para comunicação à distância tanto por voz quanto por imagem. Fora da ficção, as primeiras transmissões de rádio aconteceram no início da década de 1900 e o aparelho celular foi inventado no ano de 1973.
“Todas as manhãs, ao invés de ser impresso, como nos antigos tempos, o Earth Herald é recitado: em uma rápida conversa com um repórter, um político ou um cientista, os assinantes se põem ao corrente do que lhe pode interessar”. (Trecho do livro “O Dia de Um Jornalista Americano no Ano 2889” de Júlio Verne).
“O telefone era complementado pelo telefoto, mais uma conquista de nossa época. Se há tantos anos a palavra é transmitida por correntes elétricas, só muito recentemente pode-se transmitir também a imagem”. (Trecho do livro “O Dia de Um Jornalista Americano no Ano 2889” de Júlio Verne).
Já em sua obra “Os Quinhentos Milhões da Begum”, publicada em 1879, Verne refere-se ao lançamento de um satélite artificial que, em termos reais, só foi lançado no ano de 1957.
“Um projétil, animado de uma velocidade inicial vinte vezes superior à velocidade atual, ou seja, dez mil metros por segundo, não pode jamais cair. O seu movimento de translação, combinado com a atração da terra, torna-o um móvel destinado a circular para sempre em roda do nosso globo”. (Trecho do livro “Os Quinhentos Milhões da Begum” de Júlio Verne).
O pai da ficção científica fez tantas previsões tecnológicas que chegou até a fazer uma “profecia”. Ainda no livro “Os Quinhentos Milhões de Begum”, o personagem Herr Schultze, um alemão, nutre grande ódio pela França e pelos latinos e pretende destruir a cidade France-Ville, fundada - ficcionalmente - nos Estados Unidos por um francês, para ser uma cidade modelo. Voltando à realidade, em 1889, dez anos após a publicação desse livro, nasce Adolf Hitler, alemão que atentou contra a França e foi o principal instigador da Segunda Guerra Mundial. A figura do personagem Herr, um cientista alemão militarista, racista, calculista e nacionalista extremo, pode ser interpretada como uma representação precoce de ideais que, mais tarde, seriam associadas ao nazismo, movimento que só surgiu décadas depois, em meados de 1920.
“[...] o coronel Hendon expôs o ódio encarniçado de Herr Schultze contra a França, contra Sarrasin e a sua obra, os preparativos formidáveis anunciados pelo New York Herald, destinados a destruir France-Ville e os seus habitantes”. (Trecho do livro “Os Quinhentos Milhões da Begum” de Júlio Verne).
H.G. Wells: da ficção ao apocalipse
Herbert George Wells (1866-1946), popularmente conhecido como H.G. Wells, divide com Júlio Verne o posto de pai da ficção científica. Embora ambos tenham sido escritores do gênero, existe uma diferença em sua abordagem: enquanto Verne escreveu uma ficção científica misturada com aventura e tecnologia, Wells combinou o gênero com imaginação fantástica e especulação social.
Em seu clássico “A Guerra dos Mundos”, publicado em 1898, os marcianos invadem a Terra com suas armas tecnológicas, as quais Wells chama de raios de calor, que funcionam concentrando energia dirigida. Essa descrição se assemelha ao laser, tecnologia que começa a ser usada em combate somente na década de 1960.
“[...] clarões de chamas verdadeiras brotaram do grupo disperso de pessoas, um brilhante lampejo saltando de uma para outra. Era como se um jato invisível as tivesse atingido e se transformado em flamas brancas. Como se cada homem, súbita e momentaneamente, tivesse sido convertido em fogo. Então, à luz de sua própria destruição, eu os vi cambaleando e caindo, e seus companheiros fugindo em disparada”. (Trecho do livro “A Guerra dos Mundos” de H.G. Wells).
“Enquanto o invisível feixe abrasador os cobria, pinheiros explodiam em chamas e cada arbusto ressequido tornava-se uma massa de fogo com um som surdo. À distância, [...] vi os clarões de árvores, sebes e prédios de madeira subitamente acesos”. (Trecho do livro “A Guerra dos Mundos” de H.G. Wells).
Em seu livro “The World Set Free”, publicado em 1914, H.G. Wells previu as armas nucleares. Na obra, ainda não publicada no Brasil e que, traduzida, chama-se “O Mundo Libertado”, ele descreve bombas atômicas que alimentam uma devastadora guerra, levantando a problemática dos perigos da proliferação de armas que podem levar a Terra a um cenário apocalíptico. As bombas são relatadas como algo parecido com uma granada de urânio, que contém radiação. A ciência por trás da imaginação de Wells foi alcançada somente em 1934, quando a primeira patente de uma bomba atômica foi registrada.
“Certamente, parece agora que nada poderia ter sido mais óbvio para as pessoas do início do século XX do que a rapidez com que a guerra estava se tornando impossível. E certamente eles não a viram. Eles não a viram até que as bombas atômicas explodiram em suas mãos desajeitadas”. (Trecho do livro “The World Set Free” de H.G. Wells).
Isaac Asimov: das engrenagens à ética
Um pouco mais adiante na história da humanidade, encontramos Isaac Asimov (1920-1992), considerado o mestre da ficção científica. Asimov criou as três leis da robótica em seu conto “Runaround”, publicado em 1942, e depois as incluiu no clássico livro “Eu, Robô”, publicado em 1950. As três leis de Asimov, criadas para garantir o bem-estar e a segurança dos seres humanos na interação com os robôs, têm seus princípios usados até hoje.
“As três leis da robótica: 1 – Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal. 2 – Um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens contrariem a Primeira Lei. 3 – Um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira e a Segunda Leis”. (Trecho do livro “Eu, Robô” de Isaac Asimov).
Em “Eu, Robô”, Asimov descreve os robôs como humanoides, tendo braços, pernas, cabeça e demais traços humanos, além de serem capazes de falar. Na vida real, o primeiro robô humanóide moderno - que realizava movimentos rudimentares e era capaz de processar informações, conduzindo uma comunicação simples com as pessoas - foi criado na Universidade Japonesa Waseda, em 1973.
“Usando óvulos humanos e controle de hormônios, é possível criar pele e carne humana em torno de um esqueleto de plástico silicoso poroso, cuja aparência desafiaria qualquer exame externo. Os olhos, o cabelo e a pele seriam realmente humanos e não humanoides. Uma vez que se instale um cérebro positrônico e todos os demais aparelhos que se deseje, ter-se-á um perfeito robô humanoide”. (Trecho do livro “Eu, Robô” de Isaac Asimov).
“[...] Dr. Alfred Lanning, da U.S. Robôs, fez a demonstração do primeiro robô móvel equipado com voz. Era um robô grande, feio e desajeitado, recendendo a óleo lubrificante e destinado a trabalhar nas minas projetadas para Mercúrio. Mas era capaz de falar e fazer sentido”. (Trecho do livro “Eu, Robô” de Isaac Asimov).
Arthur C. Clarke: o homem do amanhã
Em 1968, Arthur Charles Clarke (1917-2008) publicou “2001 - Uma Odisséia no Espaço”, obra na qual os avanços tecnológicos da sociedade e a inteligência artificial são abordados. Hal 9000, idealizado no livro pelo autor, é um computador com consciência e voz humana, capaz de tomar decisões sozinho. A tecnologia citada, apesar de muito parecida com a dos assistentes virtuais, como ChatGPT, Alexa, Google Assistente e outros, - cujo primeiro protótipo foi criado em 1966 e uma tecnologia um pouco mais aprimorada foi desenvolvida na década de 1980 - ainda é muito avançada e a sociedade não a alcançou plenamente. Porém, assim como tantos demais exemplos de tecnologias que foram imaginadas muito antes de serem criadas, é de se pensar que, em um futuro não muito distante, uma consciência humana virtual será, enfim, alcançada.
“Fosse como fosse, o resultado final foi uma máquina inteligente, capaz de reproduzir – alguns filósofos continuavam a preferir usar a palavra «mímica» - a maioria das atividades do cérebro humano, mas com muito maior velocidade e rigor”. (Trecho do livro “2001 - Uma Odisséia no Espaço” de Arthur C. Clarke).
O futuro nos livros de ficção científica
Para o autor Fernando Couto de Magalhães, pós-graduado em História, Sociologia e Filosofia pela PUC-RS, com cursos de extensão em neurociência (PUC-RS), arqueologia (Harvard) e antropologia (Universidade de Queensland, Austrália), a ficção que se baseia na ciência, para ser boa, precisa ser muito imaginativa e, normalmente, dela que nascem novas ideias científicas. Ele cita uma frase de Albert Einstein, que disse que “a imaginação é mais importante que o conhecimento”. Fernando não tem dúvidas de que “a ficção científica influencia, e muito, a nossa rotina tecnológica e vai continuar influenciando com novos autores, que também são cheios de ideias”. O autor acredita que a ficção científica é um dos melhores caminhos para se imaginar novas tecnologias e novas sociedades, sendo, inclusive, a melhor forma de introduzir pessoas leigas, crianças e estudantes aos temas científicos.
E o que o futuro nos reserva? Quais serão as próximas tecnologias? Já imaginamos muitas que, aos poucos, podem tornar-se realidade, mas e aquelas que ainda nem imaginamos? Como será o mundo daqui 100 anos? Com a velocidade dos avanços tecnológicos, será que conseguimos mensurar o que as gerações futuras vão vivenciar? E se conseguirmos fantasiar os anos vindouros, quem realizará tais excêntricas ideias? Ainda podemos nos tornar grandes criadores? E quais serão os próximos nomes a serem estudados, como Mary Shelley, Júlio Verne, H.G. Wells, Isaac Asimov e Arthur C. Clarke?
O futuro, talvez, já esteja escrito em algum livro de ficção científica, e aguarda, pacientemente, seu momento de acontecer. Porventura, você já até o leu, sem nem sequer imaginar estar entre os limites da ficção e realidade.
Adoro todos esse autores, Mika. Parabéns!
Uauu, gostei muito do texto!!
adorei o texto! a literatura é incrível e não possui fronteiras, é impressionante como ela pode impactar o mundo.
Sem dúvidas a ficção científica é um ensaio para o futuro, e estarmos descobrindo através dos olhos perspicazes e críticos desses autores o futuro que eles imaginavam, é sem dúvida maravilhoso. Eu amei como o texto abordou várias ideias de Jules Verne, que hoje vemos como cotidiano mas que para a época era algo além do imaginativo. Muito bom mesmo o texto. Além de tudo, a entrevista com o autor Fernando Couto que é um dos maiores da atualidade, trouxe uma veracidade e proximidade da nossa realidade para com a dos autores desse gênero.
A literatura é incrível! Ela tem o poder de ultrapassar o senso comum e nos fazer ver o mundo de uma maneira diferente. O texto é excelente, a análise das obras é fascinante e há tantas outras coisas maravilhosas para descobrir. Viva a literatura!