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Além do quadro e do giz: lições de coragem e representatividade

Atualizado: 2 de jul.

Em cada gesto, silêncio e superação, Kelly e Luiz transformam o espaço escolar em território de representatividade


Com sorriso no rosto, Kelly busca sempre inovar no ensino dos alunos e os leva para diferentes atividades pedagógica | Foto: Arquivo Pessoal
Com sorriso no rosto, Kelly busca sempre inovar no ensino dos alunos e os leva para diferentes atividades pedagógica | Foto: Arquivo Pessoal

Kelly Moreira não sonhava em ser professora. Apesar de amar livros e se encantar com outros idiomas, Letras não era sua primeira opção de curso. Durante o período do cursinho, ministrou aulas de inglês para custear a mensalidade, tudo pelo sonho de cursar o ensino superior.

Após a conclusão do curso na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), Kelly prestou um concurso, uma prova feita quase que no desespero de quem não sabe o que está fazendo, em meio à desorientação comum de quem acabara de sair do ensino médio, desnorteada com o novo mundo. “Na escola particular em que eu estudei, ninguém falava de concurso para professora. Era tudo voltado pra medicina, para essas áreas mais clássicas. Eu nem sabia muito o que eu estava fazendo”, relembra. 

Passaram-se cinco anos desde a prova até a convocação. Kelly nem lembrava mais. Foi uma colega da escola de idiomas que a avisou: “O Estado te chamou.” E então, mesmo sem nunca ter pisado numa escola pública como aluna, entrou para dar aula.

“No primeiro dia eu conheci as turmas. Você quer fazer mil coisas, tem muitas ideias... aí percebe que não é assim”.

O medo tentou toma-lá, até hoje tenta.

“A primeira semana de aula sempre me deixa ansiosa, eu fico: ai meu Deus! Especialmente com o ensino médio. Fico com medo de como vai ser. As perguntas sobre minha deficiência eu sei que vão vir e eu não me importo, eu explico que nasci assim com muito carinho, pior é quando não perguntam. Eles fazem comentários entre si”.

Entrou na primeira turma no dia 02 de abril, o 7º D, no Colégio Mário Quintana, em Cascavel. Planejou uma aula de speaking, com alunos organizados em duplas, como fazia no curso de idiomas. Mas ali, era outro universo. “Uma aluna me olhou e disse: ‘Professora, você tá maluca, né?’. Ela disse: ‘Você não conhece essa turma. Essa turma é terrível’”. O que era para ser diálogo virou desabafo. O que era planejamento virou aprendizado na marra.

No início, pensou em desistir. Mas, ficou. Adaptou-se. E aos poucos, descobriu que ensinar não era apenas passar conteúdo. Era se reinventar todos os dias.

Todos os dias continua procurando e encontrando novas formas de ensinar e também de se blindar. Ela nasceu com apenas um braço e sempre fez tudo o que era necessário como era possível.  Entre as lembranças, as lutas silenciosas e os dias em que quis ir embora, Kelly também guarda aprendizados que florescem no tempo. “Eu era muito chata na escola. Tinha que mostrar que era inteligente, que conseguia fazer tudo, porque achava que iam pensar o contrário por causa da deficiência. Hoje, sou mais tranquila. Se eu não consigo, ou se eu não quero fazer, tudo bem”, declara. 

Apesar de se munir contra os comentários, a exclusão ainda é sentida. Não tanto no trabalho,mas no social, no cotidiano. “Eu demorei para entender que eu podia usar a fila preferencial. Mesmo hoje, com quase 40 anos, às vezes fico olhando para os lados, com medo de que alguém diga que eu não deveria estar ali”, assume. 

Dentro da escola, quase não vê outros professores com deficiência. “Onde estão essas pessoas?” Pergunta que ecoa. Nos corredores, nos conselhos de classe, nos grupos de WhatsApp, ela é minoria. “Trabalhei com pouquíssimos colegas com deficiência. Hoje, acho que nenhum. E alunos também, são poucos com deficiência física. Com autismo, TOD (Transtorno Opositivo-Desafiador) temos mais. Mas física mesmo, raros”.

As percepções de Kelly estão corretas, segundo dados de 2018 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), os professores com algum tipo de deficiência representam a 0,30% do total de professores do ensino médio e fundamental e 0,43% do total de professores do ensino superior.

E mesmo sendo uma professora com deficiência, Kelly confessa:

“A gente não sabe trabalhar com alunos com deficiência. A faculdade não ensinou. Talvez agora esteja diferente, mas na minha época parecia que essa parte era pulada”. 

A fala da professora encontra eco na legislação. A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015) estabelece, em seu artigo 28, que os sistemas de ensino devem garantir “formação de profissionais da educação para inclusão escolar” e assegurar condições para a permanência de professores com deficiência no exercício de suas funções, incluindo adaptações e tecnologias assistivas. No entanto, na prática, a formação inicial ainda falha em preparar os docentes para lidar com a diversidade em sala de aula e a presença de professores com deficiência, como Kelly, permanece como exceção num sistema que ainda não se estruturou para acolher todas as diferenças.


Xeque-mate no preconceito


Luiz orientando alunos com a sua própria metodologia | Foto: Arquivo Pessoal
Luiz orientando alunos com a sua própria metodologia | Foto: Arquivo Pessoal

Luiz Fernando já observa quanto a representatividade faz a diferença nas salas de aula. “Os alunos que também têm deficiência se sentem motivados. Saber que como eu cheguei, eles também podem chegar, né?”, declara o professor de educação física.

Ele tem 45 anos e uma presença serena, daquelas que ensinam mais pelo exemplo do que pelo tom de voz. Educador desde 2009, ele dá aula em duas escolas estaduais de Cascavel: o Colégio Estadual Mário Quintana e o Colégio Estadual Olinda Periolo. São várias turmas, várias histórias, e um mesmo propósito: ensinar.

A paixão pela educação física começou no tabuleiro. Luiz jogava xadrez e, em 2014, foi campeão paranaense. Era técnico em um projeto da cidade quando decidiu cursar o ensino superior, onde foi escolhido como nome da turma.

Ainda assim, a trajetória até ali não foi simples. Luiz tem paralisia cerebral, que comprometeu sua mobilidade e causou insuficiência respiratória. “O maior desafio é explicar, por isso criei meu método. Eu precisava encontrar um jeito de ensinar o que aprendia. Explicava e pedia que um colega mostrasse no meu lugar”, relata. 

Foi assim, adaptando o mundo à sua forma de estar nele, que Luiz construiu sua prática docente. Hoje, já não atua mais com xadrez, está integralmente em sala. E embora a rotina seja puxada, dividida entre duas escolas e horários variados, ele se mantém firme. “Tem dias difíceis, mas os alunos respeitam.” O professor conta com o apoio de cuidadores, que o levam para as escolas. E apesar das limitações, nunca pensou em mudar de área. “Nunca quis outra coisa. Quero seguir na educação. Meu próximo objetivo é fazer mestrado”.

Na sala de aula, segue os planejamentos por turma. Ensina com calma, com paciência. Quando fala dos momentos marcantes da carreira, os olhos brilham: “É muito gratificante quando vejo um ex-aluno na faculdade”.

E, ao final da conversa, deixa um pensamento que resume toda a sua trajetória: Luiz moveu as peças que tinha, com estratégia, coragem e silêncio. E encontrou na sala de aula o seu xeque-mate contra o preconceito e a exclusão. Ele explica que para enfrentar a sociedade preconceituosa, a educação é o ponto principal: 

“A educação transforma. É por meio dela que a gente constrói uma sociedade mais respeitosa”.

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Muito importante falar sobre inclusão na nossa sociedade, onde o diferente é sempre visto de uma forma distintas e com preconceito, parabéns pela matéria.

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Produzido pelos acadêmicos do 5º período do curso de Jornalismo do Centro Universitário FAG, na disciplina de Webjornalismo, sob orientação do professor Alcemar Araújo.

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