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A culpa é sua, é minha, é nossa (ou de quem estiver jogando)

A explosão das casas de apostas no Brasil revela a falta de regras claras, a omissão dos políticos e o impacto direto na vida de milhares de jovens


Influenciadora Virginia Fonseca na CPI das Bets: depoimento com discurso ensaiado e imagem cuidadosamente controlada | Foto: Andressa Anholete/Agência Senado
Influenciadora Virginia Fonseca na CPI das Bets: depoimento com discurso ensaiado e imagem cuidadosamente controlada | Foto: Andressa Anholete/Agência Senado

Era uma vez um país onde até a sorte virou produto. Onde o sonho de enriquecer sem sair de casa se transformou em conteúdo patrocinado. E onde apostar virou verbo conjugado por políticos, influenciadores e, claro, pelo povo brasileiro.

A legalização das apostas esportivas no Brasil, oficializada em 2018 e regulamentada em 2023, foi vendida como uma oportunidade de ouro: arrecadação para o Estado, transparência para o setor e diversão para o público. Só esqueceram de combinar com a realidade. Em vez de controle, houve uma corrida por lucro. Em vez de educação sobre os riscos, houve marketing. E, em vez de proteção ao consumidor, houve abandono.

Em poucos meses, os sites de apostas, as famosas “bets”, se multiplicaram. Viraram patrocinadores de clubes, reality shows, podcasts e até eventos religiosos. Mas onde realmente brilharam foi no feed e nos stories ensolarados dos influenciadores, que apareceram como bilhetes dourados para a liberdade financeira.


Roleta gira e cobra o preço


Com o tempo, surgiram as consequências: gente vendendo móveis para cobrir prejuízos, jovens apostando o dinheiro dos pais, casais se separando por causa de dívidas. E, no topo dessa pirâmide, um ciclo de culpa institucionalizada.

Agora, os políticos abrem CPIs para investigar o que eles mesmos ajudaram a legalizar. Os influenciadores, pressionados, correm para apagar vídeos, tentar revisar contratos, contratar advogados. E o povo, com saldo negativo, quer respostas. Ou, pelo menos, um novo culpado.

A CPI das Bets, instalada em 2024, voltou à tona agora em 2025 e se tornou o palco onde se desenrola essa tragicomédia. Um dos momentos que mais viralizou foi o depoimento de Virgínia Fonseca, uma das maiores influenciadoras do país, que possui mais de 50 milhões de seguidores. Sentada diante dos senadores, ela afirmou que não sabia das possíveis consequências das publicidades. Disse que só assinou o contrato, não explorou ninguém, e pediu desculpas.

O moletom estampado com o rosto da filha preferida pelo público, o cabelo sem babyliss e o rosto com pouca maquiagem fizeram parte de um branding milimetricamente calculado. Tirou selfie com um senador no meio da sessão. O Brasil viralizou. A indignação também. Mas nada de novo sob o sol.

Mas a culpa é de quem, afinal?


O político, que votou a favor da legalização sem exigir contrapartidas, diz que a culpa é das plataformas. O influenciador, que vendeu o cassino como renda extra, diz que a culpa é da legislação. As plataformas, claro, afirmam que o jogo é legal e que cada usuário deve ter responsabilidade. E o povo… bem, o povo começa a se culpar por ter acreditado.

Mas será justo cobrar senso crítico de uma população que não tem nem educação financeira nas escolas? Será ético culpar jovens por se deixarem levar por celebridades cujo único compromisso é com o engajamento? E será legítimo o governo fingir surpresa agora, depois de ter deixado o setor evoluir sob o manto da arrecadação?

O problema aqui não é só moral. É estrutural. É político. É cultural.

A explosão das bets é só mais um reflexo do Brasil que adora soluções mágicas. Apostar virou febre porque estudar, trabalhar e economizar parecem cada vez menos eficazes. Porque o salário não dá, o aluguel aumentou, o futuro parece ficção. E aí, quando alguém promete um atalho - ainda que seja para um buraco - o povo vai.

Não se trata de proibir o jogo. Trata-se de reconhecer o jogo maior: o das narrativas. O da manipulação. O do capital.

E dentro dele, os influenciadores são peças-chave. Porque têm a linguagem certa, o rosto certo, o alcance certo. Não são só anunciantes. São formadores de desejo. Vendem uma imagem de sucesso tão sedutora quanto inalcançável. E, por isso, sua responsabilidade precisa ser cobrada - não apenas pela justiça, mas pela sociedade.

Do outro lado, os políticos agora encenam indignação. Chamam influenciadores para depor, como se fossem caçadores de bruxas digitais. Mas não explicam por que demoraram tanto para regulamentar o setor. Não explicam como deixaram essas empresas operarem em paraísos fiscais, sem controle ou transparência.

Em meio à CPI, um dado da Datafolha chama a atenção: 44% dos brasileiros entre 16 e 29 anos já fizeram alguma aposta online. Muitos deles se endividaram. Alguns desenvolveram compulsões. Tudo isso antes de qualquer campanha de conscientização real, antes de qualquer limite efetivo de publicidade.

Enquanto isso, as plataformas seguem funcionando. Lucrativas, ativas e impunes.


Influenciador Rico Melquíades jogando no “tigrinho” durante sessão da CPI das Bets e exibindo o conteúdo aos senadores | Foto: Geraldo Magela/Agência Senado
Influenciador Rico Melquíades jogando no “tigrinho” durante sessão da CPI das Bets e exibindo o conteúdo aos senadores | Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

A conta não fecha. A fatura, sim


O que a CPI das Bets mostra é o fracasso de um modelo que mistura liberdade de mercado com omissão do Estado. Que permite que a propaganda seja mais divulgada do que a educação sobre os riscos.

Virgínia ganhou duzentos mil seguidores após o depoimento. Continuará milionária. Os políticos que não criaram leis claras e eficazes seguem nos seus cargos. As plataformas, no ar.

E os brasileiros? Bom, os brasileiros continuam apostando. Na próxima chance. No próximo influenciador.

Porque aqui, o vício nunca foi só pelo jogo. É também pelo perdão. Pela memória curta. Pela eterna esperança de que, um dia, alguém nos dê aquilo que não conquistamos - nem com esforço, nem com sorte.

E, claro, com a certeza de que, se der errado, alguém vai assumir a culpa.

De preferência, outra pessoa.



4 Comments


É, a culpa mais uma vez recaindo sobre o povo e os verdadeiros responsáveis fingindo surpresa sobre a gravidade de suas ações. Parabéns pelo tema, João. Atual e necessário.

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Parabéns pelo texto!

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Muito interessante, assunto extremamente necessário João, parabéns!!

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👏👏

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Produzido pelos acadêmicos do 5º período do curso de Jornalismo do Centro Universitário FAG, na disciplina de Webjornalismo, sob orientação do professor Alcemar Araújo.

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