top of page

A casa, o anel e as estrelas: uma história de saudade

Atualizado: 5 de mai.


A madrinha que sempre esteve por perto e o anel da promessa dos 18 anos - Foto: Luiza Bosi

Era meados de 1970, quando ela bateu à porta da casa dos meus avós. Não chegou com escândalo, não veio com luxo, não carregava o futuro no bolso, mas entrou e nunca mais saiu.

Valdete, a Dete, como era chamada. Uma mulher simples, que só usava saias. Era ela, seus três anéis nos dedos e um coração que escolheu a nossa família como se tivesse nascido nela.

A família dela se espalhou. Dete ficou com a gente, em Anahy-PR, onde construiu não apenas a sua casa, mas sua história junto à nossa. Foi contratada para trabalhar e ajudar com a casa, mas, desde o início, fez muito mais. Ela escolheu a nossa família para ser a sua.

Nos anos 2000, juntou dinheiro e construiu sua casa. E, em 2006, com meus pais grávidos de mim, ela a entregou, com amor, para que morássemos. E lá ficamos por um bom tempo: nós, na casa que era dela, e ela, na casa dos meus avós.

"Antes mesmo de eu nascer, ela já fazia parte da minha vida. Minha mãe não pensou duas vezes: Dete seria minha madrinha de batismo. E foi, mas não só uma madrinha - tornou-se uma avó para mim."

Aos meus três anos, minha mãe começou a faculdade. E quem ficava comigo era a Dete. À noite, tínhamos um ritual que era só nosso: leite quente com açúcar que ela fazia com tanto carinho. O cheiro adocicado tomava a cozinha, misturando-se com o calor das nossas conversas. Depois, vinha a hora dos programas no SBT - “Roda a Roda Jequiti”, “Pegadinhas do Silvio Santos” - e das risadas que faziam o sofá parecer um pedaço de céu.

No fim do dia, ela me levava para casa. Descíamos a estradinha de terra. E ela, paciente, me ensinava a olhar para cima: procurar as Três Marias, o Cruzeiro do Sul. Eu nunca encontrava. Mas ela insistia, como quem sabia que ver estrelas não é só questão de olhos: é questão de amor e paciência.

"Ah, e os anéis. Tinha um pelo qual eu era apaixonada: aquele com a letra V! Pedi por ele a vida inteira. E a resposta era sempre a mesma, dita com o mesmo sorriso que carregava promessas: “Quando você fizer 18 anos, ele é seu”. Era como um segredo só nosso, guardado entre a infância e o futuro que eu mal sabia esperar."

O tempo passou. E, com ele, também chegaram mudanças que nenhum de nós queria. Dete ficou doente. Fez exames e o resultado: câncer no intestino. Mesmo mal, seguia firme, acreditando que tudo daria certo. Era como sentir o chão escapar de nossos pés. Uma cirurgia de emergência foi marcada, às vésperas do meu aniversário.

Fui vê-la antes da operação e gravei a conversa escondida, como quem tenta guardar o que não pode ser esquecido. Na despedida da visita, ela disse: “Luiza, eu vou te dar R$ 200. Será seu presente de aniversário adiantado, porque se eu não voltar - mas sei que vou -, pelo menos já vai estar com seu presente. Pegue o anel no dia do seu aniversário, desmanche-o e refaça com a sua letra. E, se eu não estiver em casa no dia da sua festa, quero que você faça igual, tá bom?”

Respondi: “Tá bom.” E ela disse: “Deus te abençoe. Te amo.” Fui embora, sem saber que aquele seria o nosso último "te amo" ao pé do ouvido.

No dia 30 de agosto de 2023, ela não resistiu. Minha madrinha se foi. Mas me deixou um pedido: comemorar meu aniversário do mesmo jeito. E eu fiz. Sem ela ali, fisicamente, mas obedeci ao que me pediu. Era o mínimo que eu podia fazer.

Após o enterro, encontrei o anel com a letra V. Pensei se deveria desmanchá-lo. Mas decidi manter do jeito que ela deixou. E a gravação da nossa última conversa ainda está no celular. Até hoje, nunca ouvi. Mas está ali guardada, como um pedaço dela.

"Hoje, olho para o céu e lembro dela, que agora brilha lá do alto. Apesar de tudo, ela ainda vive. Vive no V que carrego no dedo: V de Valdete, V de vida. E, enquanto eu viver, ela viverá em mim."

Minha madrinha foi embora, mas nunca de verdade. E, quando a saudade bate à porta, eu lembro das coisas boas que passamos juntas e do quanto fui amada, incondicionalmente, por essa mulher. Pela Dete.




8 Comments


Viajei durante a leitura, adorei a crônica!

Like

Que aconchego de texto. Parabéns Heloísa!

Like

Maria Heloísa, tua crônica é um abraço em forma de palavra. Valdete não foi uma personagem: ela é presença. Viva, suave e imensa. Você costura as memórias com um fio de ternura que atravessa o tempo — das Três Marias no céu à letra V no dedo, tudo pulsa com amor e permanência. A forma como escreve transforma o cotidiano em poesia e a perda em memória viva. O anel que carrega hoje é mais que joia: é altar. E tua escrita é o retrato mais bonito de uma promessa que continua, mesmo depois do último "te amo". Dete pode ter partido, mas, nesta crônica, ela ficou. E vai seguir ficando em todo leitor que cruzar com essa história. Obrigado…

Like

Que belo, Maria! Um texto muito sensível 🥹

Like

Lindo texto Maria, uma história emocionante!

Like

Produzido pelos acadêmicos do 5º período do curso de Jornalismo do Centro Universitário FAG, na disciplina de Webjornalismo, sob orientação do professor Alcemar Araújo.

©2025 - Agência Abre Aspas - Todos os Direitos Reservados

bottom of page