A casa, o anel e as estrelas: uma história de saudade
- Maria Heloísa Nunes
- 28 de abr.
- 3 min de leitura
Atualizado: 5 de mai.
A madrinha que sempre esteve por perto e o anel da promessa dos 18 anos - Foto: Luiza Bosi
Era meados de 1970, quando ela bateu à porta da casa dos meus avós. Não chegou com escândalo, não veio com luxo, não carregava o futuro no bolso, mas entrou e nunca mais saiu.
Valdete, a Dete, como era chamada. Uma mulher simples, que só usava saias. Era ela, seus três anéis nos dedos e um coração que escolheu a nossa família como se tivesse nascido nela.
A família dela se espalhou. Dete ficou com a gente, em Anahy-PR, onde construiu não apenas a sua casa, mas sua história junto à nossa. Foi contratada para trabalhar e ajudar com a casa, mas, desde o início, fez muito mais. Ela escolheu a nossa família para ser a sua.
Nos anos 2000, juntou dinheiro e construiu sua casa. E, em 2006, com meus pais grávidos de mim, ela a entregou, com amor, para que morássemos. E lá ficamos por um bom tempo: nós, na casa que era dela, e ela, na casa dos meus avós.
"Antes mesmo de eu nascer, ela já fazia parte da minha vida. Minha mãe não pensou duas vezes: Dete seria minha madrinha de batismo. E foi, mas não só uma madrinha - tornou-se uma avó para mim."
Aos meus três anos, minha mãe começou a faculdade. E quem ficava comigo era a Dete. À noite, tínhamos um ritual que era só nosso: leite quente com açúcar que ela fazia com tanto carinho. O cheiro adocicado tomava a cozinha, misturando-se com o calor das nossas conversas. Depois, vinha a hora dos programas no SBT - “Roda a Roda Jequiti”, “Pegadinhas do Silvio Santos” - e das risadas que faziam o sofá parecer um pedaço de céu.
No fim do dia, ela me levava para casa. Descíamos a estradinha de terra. E ela, paciente, me ensinava a olhar para cima: procurar as Três Marias, o Cruzeiro do Sul. Eu nunca encontrava. Mas ela insistia, como quem sabia que ver estrelas não é só questão de olhos: é questão de amor e paciência.
"Ah, e os anéis. Tinha um pelo qual eu era apaixonada: aquele com a letra V! Pedi por ele a vida inteira. E a resposta era sempre a mesma, dita com o mesmo sorriso que carregava promessas: “Quando você fizer 18 anos, ele é seu”. Era como um segredo só nosso, guardado entre a infância e o futuro que eu mal sabia esperar."
O tempo passou. E, com ele, também chegaram mudanças que nenhum de nós queria. Dete ficou doente. Fez exames e o resultado: câncer no intestino. Mesmo mal, seguia firme, acreditando que tudo daria certo. Era como sentir o chão escapar de nossos pés. Uma cirurgia de emergência foi marcada, às vésperas do meu aniversário.
Fui vê-la antes da operação e gravei a conversa escondida, como quem tenta guardar o que não pode ser esquecido. Na despedida da visita, ela disse: “Luiza, eu vou te dar R$ 200. Será seu presente de aniversário adiantado, porque se eu não voltar - mas sei que vou -, pelo menos já vai estar com seu presente. Pegue o anel no dia do seu aniversário, desmanche-o e refaça com a sua letra. E, se eu não estiver em casa no dia da sua festa, quero que você faça igual, tá bom?”
Respondi: “Tá bom.” E ela disse: “Deus te abençoe. Te amo.” Fui embora, sem saber que aquele seria o nosso último "te amo" ao pé do ouvido.
No dia 30 de agosto de 2023, ela não resistiu. Minha madrinha se foi. Mas me deixou um pedido: comemorar meu aniversário do mesmo jeito. E eu fiz. Sem ela ali, fisicamente, mas obedeci ao que me pediu. Era o mínimo que eu podia fazer.
Após o enterro, encontrei o anel com a letra V. Pensei se deveria desmanchá-lo. Mas decidi manter do jeito que ela deixou. E a gravação da nossa última conversa ainda está no celular. Até hoje, nunca ouvi. Mas está ali guardada, como um pedaço dela.
"Hoje, olho para o céu e lembro dela, que agora brilha lá do alto. Apesar de tudo, ela ainda vive. Vive no V que carrego no dedo: V de Valdete, V de vida. E, enquanto eu viver, ela viverá em mim."
Minha madrinha foi embora, mas nunca de verdade. E, quando a saudade bate à porta, eu lembro das coisas boas que passamos juntas e do quanto fui amada, incondicionalmente, por essa mulher. Pela Dete.
Viajei durante a leitura, adorei a crônica!
Que aconchego de texto. Parabéns Heloísa!
Maria Heloísa, tua crônica é um abraço em forma de palavra. Valdete não foi uma personagem: ela é presença. Viva, suave e imensa. Você costura as memórias com um fio de ternura que atravessa o tempo — das Três Marias no céu à letra V no dedo, tudo pulsa com amor e permanência. A forma como escreve transforma o cotidiano em poesia e a perda em memória viva. O anel que carrega hoje é mais que joia: é altar. E tua escrita é o retrato mais bonito de uma promessa que continua, mesmo depois do último "te amo". Dete pode ter partido, mas, nesta crônica, ela ficou. E vai seguir ficando em todo leitor que cruzar com essa história. Obrigado…
Que belo, Maria! Um texto muito sensível 🥹
Lindo texto Maria, uma história emocionante!